“QUE MUNDO É ESSE, QUE
ASSUSTA E MATA CRIANÇAS?”
Leonardo Boff nos dá uma
oportunidade para pensarmos seriamente o mundo em que (sobre)vivemos, esse
mundo que assusta e mata Crianças, meros alvos das guerras e da espoliação econômica...(Eduardo
Hirata)
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O pequenino afogado Ayslan Kurdi nos faz chorar e
pensar
(Por Leonardo
Bof, no “Jornal do Brasil”, RJ, 07/09/15)O
pequenino sírio de 3 a 4 anos jaz afogado na praia, pálido e ainda con suas
roupinhas de criança. De bruços e com o rosto voltado ao lado, como quem
quisesse ainda respirar. As ondas tiveram piedade dele e o levaram à praia. Os
peixes, sempre famintos, o pouparam porque também eles se compadeceram de sua
inocência. Ayslan Kurdi é seu nome. Sua mãe e seu irmãozinho também morreram. O
pai não pôde segurá-los e lhes escaparam das maõs, tragados pelas águas.
Querido
Ayslan: você fugia dos horrores da guerra na Síria, onde tropas do
presidente Assad, apoiado pelos ricos Emirados árabes, lutam contra soldados do
cruel Estado Islâmico, esse que degola a quem não se converte à sua religião,
tristemente apoiado pelas forças ocidentais da Europa e dos Estados Unidos.
Imagino que você tremia ao som dos aviões supersônicos que lançam bombas
assassinas. Não dormia de medo de que sua casa voasse pelos ares em chamas.
Quantas
vezes você não deve ter escutado de seus pais e vizinhos quão temíveis
são os aviões não pilotados (drones). Eles caçam as pessoas pelas colinas
desérticas e as matam. Festas de casamento, celebradas com alegria, apesar de
todo o horror, também são bombardeadas, pois se supõe que no meio dos
convidados deverá haver algum terrorista.
Talvez
você nem imagina que quem pratica essa barbaridade e está por trás disso tudo,
é um soldado jovem, vivendo no Texas num quartel militar. Ele está sentado
tranquilo em sua sala diante de imensa tela como de televisão. Através de um
satélite mostra os campos de batalha da sua terra, a Síria, ou do Iraque.
Conforme a sua suspeita, com um pequeno toque num botão dispara uma arma presa
no drone. Nada sente, nada escuta, nem chega a ter pena. Lá no outro lado, a
milhares de quilômetros, são mortas subitamente 30-40 pessoas, crianças
como você, pais e mães como os seus e pessoas que nada têm a ver com a guerra.
São friamente assassinadas. Lá do outro lado, ele sorri por ter acertado o
alvo.
Por
causa do terror que vem pelo céu e pela terra, pelo pavor de serem mortos ou
degolados, teus pais resolveram fugir. Levaram toda a família. Nem pensam em
arranjar trabalho. Apenas não querem morrer ou serem mortos. Sonham em
viver num país onde não precisam ter medo, onde possam dormir sem pesadelos.
E
você, querido Ayslan, podia brincar alegremente na rua com coleguinhas
cuja língua você não entende mas nem precisa, porque vocês, crianças, têm
uma linguagem que todos, os meninos e meninas, entendem.
Você
não pôde chegar a um lugar de paz. Mas agora, apesar de toda a tristeza que
sentimos, sabemos que você, tão inocente, chegou a um paraíso onde pode enfim
brincar, pular e correr por todos os lados na companhia de um Deus que um dia
foi também menino, de nome Jesus, e que, para não deixá-lo só, voltou a ser de
novo menino. E vai jogar futebol com você; você vai poder pegar no colo um
gatinho e correr atrás de um cachorrinho; vocês vão se entender tão bem como se
fossem amigos desde de sempre; juntos vão fazer desenhos coloridos, vão rir dos
bonecos que fizerem e vão contar histórias bonitas, um ao outro. E se sentirão
muito felizes. E veja que surpresa: lá estará também seu irmãozinho que morreu.
E sua mãe vai poder abraçá-lo e beijá-lo como fazia tantas vezes.
Você
não morreu, meu querido Ayslan. Foi viver e brincar num outro lugar,
muito melhor. O mundo não era digno de sua inocência.
E
agora deixe que eu pense com meus botões. Que mundo é esse que assusta e mata
as crianças? Por que a maioria dos países não querem receber os refugiados do
terror e da guerra? Não são eles, nossos irmãos e irmãs, habitando a mesma Casa
Comum, a Terra? Esses refugiados não cobram nada. Apenas querem viver. Poder
ter um pouco de paz e não ver os filhos chorando de medo e saltando da cama
pelos estrondos das bombas. Gente que quer ser recebida como gente, sem ameaçar
ninguém. Apenas quer viver o seu jeito de venerar Deus e de se vestir como
sempre se vestiu.
Não
foram suficientes dois mil anos de cristianismo para fazer os europeus
minimamente humanos, solidários e hospitaleiros? Ayslan, o pequeno sírio, morto
na praia é uma metáfora do que é a Europa de hoje: prostrada, sem vida, incapaz
de chorar e de acolher vidas ameaçadas. Não ouviram eles tantas vezes que quem
acolhe o forasteiro e o perseguido está anonimamente hospedando Deus?
Querido
Ayslan, que a sua imagem estirada na praia nos suscite o pouco de humanidade
que sempre resta em nós, uma réstea de solidariedade, uma lágrima de compaixão
que não conseguimos reter em nossos olhos cansados de ver tanto sofrimento inútil,
especialmente, de crianças como você. Ajude-nos, por favor, senão a chama
divina que tremula dentro de nós, pode se apagar. E se ela se apagar, então
afundaremos todos, pois sem amor e compaixão nada mais terá sentido neste
mundo.
De
Leonardo Boff, um vovô de um país distante que já acolheu muitos de seu país, a
Síria, e que se compadeceu com sua imagem na praia e lhe fizeram escapar
doloridas lágrimas de compaixão.
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