... "Qual o sentido disso tudo? Pura fatalidade irreformável? Ou não possui um sentido secreto? Despojamo-nos de tudo, até de nós mesmos no último momento da vida (morte), porque não fomos feitos para esse mundo nem para nós mesmos, mas para o Grande Outro que deve encher nossa vida: Deus! Deus vai, na vida, nos tirando tudo para nos reservar cada vez mais intensamente para si; pode até tirar-nos a certeza se tudo valeu a pena".
* Como sugere Leonardo Boff, é momento de se preparar para o encontro...
(Eduardo Hirata)
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As crises da vida e a autorrealização
(Por Leonardo Boff,
no “Jornal do Brasil”- RJ, 03/08/2015)
Quase
só se fala de crise e crise das crises, aquela da Terra e da vida,
ameaçadas de desaparecer como acenou o Papa Francisco em sua encíclicas
sobre “o cuidado da Casa Comum”.
Mas
tudo o que vive é marcado por crises: crise do nascimento, da juventude, da escolha
do parceiro ou parceira para a vida, crise da escolha da profissão, crise do
“demônio do meio-dia”como a chamava Freud que é a crise dos quarenta anos
quando nos apercebemos que já estamos chegando ao topo da montanha e começa a
sua descida.
Por
fim a grande crise da morte quando passamos do tempo para a eternidade.
O
desafio posto a cada um não é como evitar as crises. Elas são inerentes à nossa
condição humana. A questão é como as enfrentamos: que lições tiramos delas e
como podemos crescer com elas. Por aí passa o caminho de nossa autorrealização
e de nossa maturidade como seres humanos.
Toda
situação é boa, cada lugar é excelente para nos medirmos conosco mesmo e
mergulharmos em nossa dimensão profunda e deixar emergir o arquétipo de
base que carregamos (aquela tendência de fundo que sempre nos martela) e que
através de nós quer se mostrar e fazer sua história que é também a nossa
verdadeira história.
Aqui ninguém pode substituir o outro. Cada um
está só. É a tarefa fundamental da existência.
Mas
sendo fiel neste caminhar, a pessoa já não está mais só. Construiu um Centro
pessoal a partir do qual pode se encontrar com todos os demais caminhantes. De
solitário faz-se solidário.
A
geografia do mundo espiritual é diferente daquela do mundo físico. Nesta os
países se tocam pelos limites. Na outra, pelo Centro.
É a indiferença, a mediocridade, a ausência
de paixão na busca de nosso EU profundo que nos distancia de nosso Centro
e dos outros e assim perdemos as afinidades, embora estejamos ao lado deles, no
meio deles e pretendendo estar a serviço deles.
Qual
é o melhor serviço que posso prestar às pessoas? É ser eu mesmo como
ser-de-relações e por isso sempre ligado aos outros, ser que opta pelo
bem para si e para os outros, que se orienta pela verdade, ama e tem compaixão
e misericórdia.
A
realização pessoal não consiste na quantificação de capacidades pessoais que
podem ser realizadas, mas na qualidade, no modo como fazemos bem aquilo que a
vida situada nos cobra.
A quantificação, a busca de títulos, de
cursos sem fim, pode significar em muitas pessoas a fuga do encontro com a
tarefa de sua vida: de se medir consigo mesmo, com seus desejos, com suas
limitações, com seus problemas, com suas positividades e negatividades e
integrá-los criativamente.
Foge no acúmulo do saber inócuo que mais
ensoberbece e afasta dos outros do que nos amadurece para poder compreender
melhor a nós mesmos e o mundo.
A
linguagem trái estas pessoas que dizem: sou eu que sei, sou eu que faço, sou eu
que decido. É sempre o o eu e nunca o nós ou a causa, comungada também
por outros.
A
realização pessoal não é obra tanto da razão que dis-corre sobre
tudo, mas do espírito que é nossa capacidade de criar visões de conjunto e de
ordenar as coisas em seu justo lugar e valor.
Espírito é descobrir o sentido de cada
situação. Por isso é próprio do espírito a sabedoria da vida, a vivência do
mistério de Deus, decifrado em cada momento. É a capacidade de ser todo em tudo
o que faz.
Espiritualidade não é uma ciência ou uma
técnica, mas um modo de ser inteiro em cada situação.
A
primeira tarefa da realização pessoal é aceitar a nossa situação com seus
limites e possibilidades. Em cada situação está tudo, não quantitativamente
dis-tendido, mas qualitativamente recolhido como num Centro. Entrar nesse
Centro de nós mesmos é encontrar os outros, todas as coisas e Deus.
Por isso dizia a velha sabedoria da Índia: “Se
alguém pensa corretamente, recolhido em seu quarto, seu pensamento é ouvido a
milhares de quilômetros de distância”. Se quiseres modificar os outros, comece
por modificar-te a ti mesmo.
Outra
tarefa imprescindível para a realização pessoal é saber con-viver com o último
limite que é a morte. Quem dá sentido à morte, dá sentido também à vida.
Quem não vê sentido na morte também não descobre sentido na vida. Morte porém é
mais que o último instante ou o fim da vida. A vida mesma é mortal.
Em outras palavras, vamos morrendo
lentamente, em prestações, porque quando nascemos começamos já a morrer, a nos
desgastar e nos despedir da vida. Primeiro nos despedimos do ventre materno e
morremos para ele. Depois nos despedimos da infância, da meninice, da juventude,
da escola, da casa paterna, da idade adulta, de algumas de nossas tarefas, de
cada momento que passa e por fim nos despedimos da própria vida.
Esta
despedida é um deixar para trás não apenas coisas e situações, mas sempre um
pouco de nós mesmos. Temos que nos desapegar, nos empobrecer e esvaziar.
Qual o sentido disso tudo? Pura fatalidade
irreformável? Ou não possui um sentido secreto? Despojamo-nos de tudo, até de
nós mesmos no último momento da vida (morte), porque não fomos feitos para esse
mundo nem para nós mesmos, mas para o Grande Outro que deve encher nossa vida:
Deus! Deus vai, na vida, nos tirando tudo para nos reservar cada vez mais
intensamente para si; pode até tirar-nos a certeza se tudo valeu a pena.
Mesmo assim persistimos, crendo nas palavras
sagradas:”Se teu coração te acusa, saiba que Deus é maior que teu coração”(cf.
1 Jo 3,20 ). Quem conseguir incorporar as negatividades, mesmo injustas,
em seu próprio Centro, este alcançou o mais alto grau de hominização e de
liberdade interior.
As
negatividades e as crises pelas quais passamos, nos dão esta lição: de nos
despojar e nos preparar para a total plenitude em Deus. Então, como diz o
místico São João da Cruz: seremos Deus, por participação.
* teólogo e colunista do JB online