(Por Leonardo Mendes .27 de maio de 2017, no
DCM)
Tinha uma
cracolândia no meio do caminho até a minha casa. Ficava dentro de um túnel,
próximo da saída, e dava para ver pelo lado de fora apenas os vultos daquelas
pessoas, criaturas-sombra das ideias e histórias representadas.
De vez em quando
eu via sair alguém de lá de dentro. Sempre cobertos pela poeira do asfalto,
pelo monóxido de carbono dos carros, pareciam até mais pretos do que são.
Mas eram sempre pretos.
Mas eram sempre pretos.
Nunca vi a
ex-modelo loira de olhos verdes viciada em crack, capa da Veja.
Talvez todas já
tenham sido salvas em campanhas beneficentes de programas de auditório e
restaram só os pretos.
O prefeito de São
Paulo João Doria pediu e a Justiça autorizou agora então que está aberta a
temporada de caça ao cracudo que não interessa ao entretenimento.
Esse personagem
contemporâneo de características facilmente identificáveis, que habita os
pesadelos movidos à tarja preta dos eleitores de Dória.
O cracudo não é a
ex-modelo loira capa da Veja, ela representa o dependente químico, o problema
de saúde pública, a vítima da sociedade, a desilusão, o abandono. É aquela que
os programas dominicais tentam ajudar para subir o ibope num quadro de antes e
depois.
Já o cracudo não
tem antes e depois, não tem história a ser contada como releitura da Cinderela.
Ele já nasceu na cracolândia, lá sempre viveu e no seu relógio é sempre
meia-noite. Os limites do seu mundo são os limites da sua linguagem.
Mas a gestão
Doria afirma então que nem todos serão compulsoriamente internados. Só aqueles
que, levados a força pela polícia até um psiquiatra, não apresentem um
linguajar compreensível, não se portem de maneira adequada.
Parece uma
distopia, mas é isso o que acontece hoje em São Paulo.
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Depois de mandar
demolir casas com gente dentro, a nova ofensiva da prefeitura é sumir com os
sobreviventes. Encarcerá-los contra a vontade, sem acusação formal ou julgamento.
É assustador
porque parece que é exatamente isso o que quer boa parte daqueles que elegeram
Doria.
Querem
simplesmente não ter que conviver com o problema a caminho do shopping.
Já não são
capazes de enxergar aquelas pessoas como seres humanos, e sim apenas como
cracudos que dificultam a passagem e ameaçam atrapalhar as compras.
E assim ficamos
há poucos passos de retomar a câmara de gás.
Não que isso deva
acontecer, pois a hipocrisia dimensionada por um cristianismo de Bolsonaros
veta essa possibilidade.
E é desse
interdito que surge João Doria, para fazer o trabalho sujo de um jeito que não
agrida a hipocrisia de seus eleitores.
No fundo
fascistas, mas temerosos de dizer ou mesmo de pensar o que pensam.
No fundo não são
maus, pois lhes falta profundidade até mesmo para isso.
São pessoas que
temem um Deus vingativo, cracudos, a violência urbana, os direitos humanos…
No fundo, também
são vítimas.
Atacados pelo
fungo da banalidade do mal, de que nos fala Hannah Arendt.
Doria é a própria
banalidade, bípede, sem penas, e de suéter sobre os ombros.
·
O equívoco é colocar a polícia como linha de frente no combate ao crack,
às drogas. Antes de tudo, drogadependentes necessitam da saúde pública e da
assistência social.
·
Seja em São Paulo, ou aqui em Açailândia do Maranhão, onde “nossa
política de prevenção e combate às drogas’ insiste que é ‘problema da polícia,
de segurança pública’, mas nem nisso se investe, a constatar em mais um
assassinato à luz do dia, neste sábado que passou. Acha-se que ‘combate
policial , internação compulsória e financiamento público à comunidades terapêuticas
religiosas’ resolvem a questão.
Enquanto isso, a comunidade mais consciente de que não é
assim que se previne e se combate, questiona por quê não funciona o Conselho
Municipal de Política Pública sobre Alcool e Drogas, por quê o município não
conta com CAPS-AD ou o que o valha, e tampouco conta com um Plano Municipal de
Prevenção e Combate, etc., etc., etc.
(Eduardo Hirata)
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