(Para ajudar a entender o Brasil...)
Mas acrescentaria ao título “... e as desordeiras.” (também...)
“NÓS, OS DESORDEIROS...
(João Ubaldo Ribeiro – Veja, 07 de agosto de 2013)
“É comum que, quando estamos falando
mal do Brasil, nos refiramos na terceira pessoa tanto ao país quanto ao seu
povo. Dizemos que o brasileiro tem tais ou quais defeitos graves, como se
nós não fôssemos brasileiros iguais a quaisquer outros. Em relação aos
políticos, agimos quase como se tratasse de marcianos ou de uma espécie
diferente da nossa, não de gente aqui nascida e criada, da mesma maneira que
nós. Somos observadores e vítimas de fatos com cuja existência não temos nada a
ver. Os corruptos são ‘eles’, os que sujam as cidades são ‘eles’, os
funcionários relapsos são ‘eles’ – nunca nós.
Paralelamente, nos comprazemos em
cultivar a noção de que o povo brasileiro é basicamente muito bom, de índole
generosa, honesto, solidário, hospitaleiro, pacífico, cordial, alegre e assim
por diante. Artigos, conferências e discursos que envolvam críticas
negativas a alguma característica negativa dos brasileiros contêm as sempre uma
ressalva de praxe, a de que o povo não pode ser acusado de nada, o povo é bom.
Com isso esquecemos que não há povo geneticamente bom ou ruim e que o
comportamento e os valores prevalentes em qualquer sociedade se originam em
elementos culturais, entendidos estes em seu sentido mais lato.
Há quem faça uso de estatísticas
comparativas para mostrar que, em áreas como a segurança, por exemplo, algumas
grandes cidades nossas apresentam índices de criminalidade comparáveis com
cidades americanas do mesmo porte. Então não estaríamos tão mal assim. Mas não
há como fazer uma comparação adequada. O número de infrações e de
ocorrências policiais em cidades americanas é muito maior do que seria aqui,
porque lá se recorre à polícia com muito mais frequência, relativamente. Aqui,
tem gente que não dá queixa nem de carro furtado. Sem falar que as estatísticas
geralmente não mostram assaltos organizados e sanguinários realizados desde São
Paulo a cidadezinhas do interior do Nordeste, onde parece que está surgindo um
cangaço modernizado, com os invasores intimidando a população, explodindo
caixas de bancos, pilhando casas comerciais e invadindo fazendas. E existem
ainda as vastas áreas onde não há polícia, ou a presença do estado é rarefeita
e esporádica. No caso, as estatísticas, porque viciadas na origem, valem
bem pouco.
E não somente a violência e a
insegurança são maiores entre nós do que geralmente se reconhece. Não está
na moda falar em padrões morais e quem se arrisca a mencioná-los é
desdenhosamente chamado de moralista. Mas não tem nada de moralista aquele que
lembra que o homem é um ser moral. Sem senso moral, o homem é um bicho ou um
psicopata. Claro, a nação não perdeu suas referências morais, mas o clima
nessa área parece hoje cínico e complacente e não é raro que o apego a algum
valor moral seja qualificado como coisa de otário. Recato e pudor parecem ter
sumido e o exibicionismo, em mil formas contemporâneas, se manifesta em toda
parte. Atos de civilidade, como devolver dinheiro achado, são manchete nos
jornais.
Não há órgão público que não seja
alvo de acusações ou suspeitas de corrupção, nepotismo, tráfico de influência e
outras práticas imorais ou criminosas. O engenho nacional desenvolveu sistemas
eletrônicos avançados e organizou equipes de ‘consultores’ para fraudar
concursos e exames. Dia sim, dia não, noticiam-se desvios de verbas
astronômicos, obras públicas caindo aos pedaços antes de serem concluídas e
toda espécie de falcatrua. Neste instante mesmo, centenas ou milhares de
policiais, pelo país afora, estão embolsando o ‘agrado’ que lhes dão os
motoristas para evitar uma multa. Também todos os dias, centenas de
milhares de pessoas, ou até milhões, pagam meia-entrada com carteiras de
estudante falsificadas. O ‘por fora’ é rotineiramente cobrado, em serviços que
ou deveriam ser gratuitos ou fáceis de obter. Vivemos imersos num mar de
pequenas delinquências cotidianas que já notamos, ou não achamos que fazem
parte natural e inevitável da vida.
O desprezo pela lei e pela moral, a
não ser nos raros casos em que a sanção chega com prontidão e eficácia, é a
regra entre nós. E essa situação é piorada pela existência das conhecidas leis
que pegam, ou ainda, de leis meio disparatadas, que ninguém acredita que serão
observadas com rigor. Por exemplo, há quem sustente que, se o sujeito for pegado
por um fiscal do Ibama, matando um caititu no mato, é melhor matar o fiscal do
que reconhecer o assassinato do caititu. Depois de matar o fiscal, o caçador
foge do flagrante, apresenta-se depois à polícia, é réu primário com domicílio
conhecido, responde o processo em liberdade e pega aí seus dois aninhos, talvez
em regime semiaberto. Já a morte do caititu seria crime inafiançável, cana dura
imediata e implacável.
As estatísticas brasileiras de mortes
e ferimentos em acidentes de trânsito são um escândalo, qualquer que seja o
critério usado para avaliá-las. Todo trânsito brasileiro é um escândalo, nas
cidades e nas estradas. Quem passa algum tempo fora do Brasil tem que reavivar
seus reflexos, para atravessar ruas. Os motoristas brasileiros se comportam como
se o fato de um pedestre atravessar com o sinal fechado para ele lhes desse o
direito de atropelá-lo. Todos os pedestres passam de vez em quando pela
experiência de atravessar a rua bem antes da passagem de um carro e ver o
motorista acelerar na sua direção, como se mirasse nele. Nas estradas, as
manobras arriscadas, como ultrapassagens em pontos onde há sinalização
proibindo-os, são rotineiras, assim como o uso do acostamento como pista e a
violação contumaz dos limites de velocidade. E as pesquisas revelam também que
a maior parte dos acidentes é resultado de imprudência e má conduta ao volante,
desprezo pelas leis e normas técnicas.
Decifrar as causas desse
comportamento equivale, de certa forma, a decifrar o Brasil, tarefa jamais
completada por ninguém. As causas são múltiplas, controvertidas e complicadas,
o que torna muito difícil até mesmo identificá-las corretamente. Por essa
razão, assim como fazem os médicos, quando não conseguem um diagnóstico preciso
ou não conhecem com exatidão a causa de uma doença, o tratamento sintomático é
o único caminho. Não sabemos bem porque somos desordeiros, mas sabemos que
somos. E estamos condenados a continuar sendo, enquanto não levarmos a sério o
desrespeito à lei e mantivermos uma relação afetiva com a malandragem, a
esperteza marota e a frouxidão de princípios.”