Gushiken, a mídia e a justiça:
uma parábola do país que temos
(De Paulo Nogueira,
baseado em Londres, é fundador e diretor editorial do site de notícias e
análises Diário do Centro do Mundo)
(Este texto foi escrito
4 dias antes da morte de Luiz Gushiken)
Montaigne escreveu que o tamanho do
homem se mede na atitude diante da morte, e citava como exemplos Sócrates e
Sêneca.
Os dois morreram serenamente
consolando os que os amavam. Sócrates foi obrigado a tomar cicuta por um
tribunal de Atenas e Sêneca a cortar os pulsos por ordem de Nero.
Meu pai jamais se queixou em sua
agonia, e penso sempre em Montaigne quando me lembro de sua coragem diante da
morte, confortando-nos a todos.
Me veio isso ontem à mente ao ler no
twitter a notícia de Luís Gushiken morrera aos 63 anos. Depois desmentiram, mas
ficou claro que ele vive seus dias finais num quarto do Sírio Libanês, com um
câncer inexpugnável.
Soube que ele mesmo se ministra a
morfina para enfrentar a dor nos momentos em que ela é insuportável, e para evitar
assim a sedação.
Li também que ele recebe,
serenamente, amigos com os quais fala do passado e discute o presente.
A força na doença demonstrada por
Gushiken é a maior demonstração de grandeza moral segundo a lógica de
Montaigne, que compartilho.
Não o conheci pessoalmente, mas é um
nome forte em minha memória jornalística. Nos anos 1980, bancário do Banespa,
ele foi um dos sindicalistas que fizeram história no Brasil ao lado de
personagens como Lula, no ABC.
Eu trabalhava na Veja, então, e como jovem
repórter acompanhei a luta épica dos trabalhadores para recuperar parte do
muito que lhes havia sido subtraído na ditadura militar.
Os militares haviam simplesmente
proibido e reprimido brutalmente greves, a maior arma dos trabalhadores na
defesa de seus salários e de sua dignidade. Dessa proibição resultou um Brasil
abjetamente iníquo, o paraíso do 1%.
Fui, da Veja, para o jornalismo de
negócios, na Exame, e me afastei do mundo político em que habitava Gushiken.
Ele acabaria fundando o PT, e teria
papel proeminente no primeiro governo Lula, depois de coordenar sua campanha
vitoriosa.
Acabaria deixando o governo no fragor
das denúncias do Mensalão. E é exatamente esta parte da vida de Gushiken que me
parece particularmente instrutiva para entender o Brasil moderno.
Gushiken foi arrolado entre os 40
incriminados do Mensalão. O número, sabe-se hoje, foi cuidadosamente montado
para que se pudesse fazer alusões a Ali Babá e os 40 ladrões.
Gushiken foi submetido a todas as
acusações possíveis, e os que o conhecem dizem o quanto isso contribuiu para o
câncer que o está matando.
Mas logo se comprovou que não havia
nada que pudesse comprometê-lo, por mais que desejassem. Ainda assim, Gushiken
só foi declarado inocente formalmente pelo STF depois de muito tempo, bem mais
que o justo e o necessário, segundo especialistas.
Num site da comunidade japonesa, li
um artigo de um jornalista que dizia, como um samurai, que Gushiken enfim
tivera sua “dignidade devolvida”.
Acho bonito, e isso evoca a alma
japonesa e sua relação peculiar com a decência, mas discordo em que alguém
possa roubar a dignidade de um homem digno com qualquer tipo de patifaria, como
ocorreu. A indignidade estava em quem o acusou falsamente e em quem prolongou o
sofrimento jurídico e pessoal de Gushiken.
O episódio conta muito sobre a
justiça brasileira, e sobre, especificamente, o processo do Mensalão. A
história há de permitir um julgamento mais calmo, e tenho para mim que o papel
do Supremo será visto como uma página de ignomínia.
Gushiken não foi atropelado apenas
pela justiça. Veio, com ela, a mídia e, com a mídia, o massacre que conhecemos.
Um caso é exemplar.
Uma nota da seção Radar, da Veja,
acusou Gushiken de ter pagado com dinheiro público um jantar com um
interlocutor que saiu por mais de 3 000 reais. A nota descia a detalhes nos
vinhos e nos charutos “cubanos”.
Gushiken processou a revista. Ele
forneceu evidências – a começar pela nota e por testemunho de um garçom – de
que a conta era na verdade um décimo da alegada, que o vinho fora levado de
casa, e os charutos eram brasileiros.
Mais uma vez, uma demora enorme na
justiça, graças a chicanas jurídicas da Abril.
Em junho passado, Gushiken enfim
venceu a causa. A justiça condenou a Veja a pagar uma indenização de 20 mil reais.
O tamanho miserável da indenização se
vê pelo seguinte: é uma fração de uma página de publicidade da Veja. Multas
dessa dimensão não coíbem, antes estimulam, leviandades de empresas jornalísticas
que faturam na casa dos bilhões.
Não vou entrar no mérito dos leitores
enganados, que construíram um perfil imaginário de Gushiken com base em
informações como aquela do Radar. Também eles deveriam ser indenizados, a
rigor.
Gushiken enfrentou, na vida, a
ditadura, as lutas sindicais por seus pares modestos, a justiça e a mídia
predadora.
Combateu o bom combate.
***********************************************
(Na foto, Gushiken com o Senador Suplicy)