VIOLÊNCIA, VIOLÊNCIAS
Nestes tempos
tenebrosos, de violência sobre violência em Açailândia, no Maranhão e no Brasil;
dos porta-vozes do quanto pior melhor, tipo Raquel Sheherazade, Datena, Ratinho,
Marcelo Rezende, e seus clones por aqui
no pedaço, vociferando discriminação, preconceito e ódio, vomitando vingança, uma boa leitura o texto a seguir. (Eduardo Hirata)
(Foto ‘Brasil de Fato’. Charge do Latuff)
Violência, violências
A direita precisa da violência das
ruas para exercer a violência que lhe é própria
(Por Roberto Amaral, na
Carta Capital, 21/02/2014, publicada no jornal ‘Brasil de Fato em 24/02/2014)
“A discussão da violência na política
não é trivial. Ela se justifica e pode até ser um imperativo moral, quando se
vive numa ditadura desumana. Revoltar-se contra o nazismo era o que deveria
fazer qualquer ser humano decente. Mas a violência deixa de ter cabimento
quando há Estado de Direito e, além do mais, democrático, com o governo eleito
pelo povo – como hoje acontece no Brasil.”
Renato Janine Ribeiro. Valor
Econômico, 17/2/2014.
A violência, como conceito
descontextualizado, é prima-irmã da barbárie e, deste ponto de vista, é
moralmente indefensável, embora seja, do ponto de vista estratégico – da
guerra, por exemplo – não só aceitável,
como legitimada, ao ser disciplinada por tratados, pelas convenções de Genebra de 1949 e seus
protocolos de 1947, aos quais, por sinal, o Brasil aderiu. Vale lembrar, ainda,
a existência do Tribunal Penal Internacional, sediado em Haia, com competência
para julgar e punir aqueles que, na ação, cometem crimes de guerra. Todos os
Estados modernos se preparam para a guerra, mobilizando recursos materiais e
humanos.
Renato Janine Ribeiro lembra uma
violência absolvida pela ordem moral que nos rege: “(...) a que se levanta
contra ‘uma ditadura desumana, como a nazista”. Neste caso, a violência que se ergue contra o Estado
opressor deriva de um imperativo moral, e, assim, é sancionada pelo senso comum enquanto é
condenada aquela outra levada a cabo no ambiente de um Estado de direito,
“principalmente quando se trata de direito democrático”.
Exemplo dessa segunda espécie seria a
violência que tomou as ruas de nosso país e cujo momento mais dramatizado teve como palco a
cidade do Rio de Janeiro, no ultimo dia 6 de fevereiro. A morte do cinegrafista
Santiago Andrade, no pleno exercício de sua profissão, não foi, todavia, o pior
momento, nem foi a primeira morte estúpida e revoltante. Antes de Santiago
morreu a gari Cleonice Vieira de Moraes, em junho passado, em Belém, após
inalar gás lacrimogênio lançado pela Polícia Militar em confronto com
manifestantes; Fernando da Silva Cândido, manifestante, morreu no Rio em agosto
passado, também de complicações respiratórias causadas por gás lacrimogênio;
Douglas Henrique Oliveira e Luiz Felipe Aniceto de Almeida, estudantes,
perderam a vida em junho do ano passado, em Belo Horizonte, após caírem de um
viaduto tentando fugir da polícia.
Pouco antes da fatalidade que levaria
Santiago, o ambulante carioca Tasman Amaral Accioly, idoso, foi colhido por um
ônibus ao tentar fugir da confusão que se instaurou em plena Central do Brasil,
no Rio de Janeiro.
(A lista de vítimas não-fatais é
interminável, e compreende ainda a publicitária Renata da Paz Andrade, que
perdeu a visão do olho esquerdo ao ser atingida por estilhaço de bomba lançada
pelo Batalhão de Choque da PM carioca, quando participava de protesto em 20 de
junho último, e Rani Messias Castro, jovem espancada também por PMs no Rio. Na
extensa lista de profissionais da imprensa agredidos, temos, por exemplo: a
repórter da Folha de S. Paulo Giuliana Vallone, atingida no olho por disparo da
Tropa de Choque da polícia de Alckmin, em São Paulo; o fotógrafo japonês
Yasuyoshi Chiba, agredido pela PM no Rio e o jornalista Pedro Ribeiro Nogueira,
espancado por policiais em São Paulo.)
O
professor emérito e autor admirado não se refere à violência que grassa
na Venezuela contra governo legítimo, “eleito pelo povo”, como é o caso do
presidente Nicolás Maduro. Não está claro o que pensa Janine relativamente aos
“idos de junho” que recentemente voltaram à tona no Rio de Janeiro, com o
lamentável acidente (acentuo a qualificação) que levou a vida de um
profissional da imprensa, como poderia ter sido de um policial (atrabiliário ou
não) ou mesmo de um manifestante, “cidadão de bem”, ou de mesmo um black bloc,
ou de qualquer um dos vândalos de extrema direita, fantasiados de anarquistas,
cuja única razão de ser é dar ensejo à criminalização dos protestos, como
sempre quis a classe dominante, assustada com as ruas tomadas pelo povo
rebelado com o sistema e seus símbolos.
Para muitos observadores, e Janine é
um deles, a violência – ação de grupos minoritários organizados e identificados
– é tão gratuita que passa a matizar e qualificar toda a manifestação, em sua
essência espontânea e pacífica.
O assassinato do cinegrafista é
lamentável e condenável moral e legalmente (e neste último aspecto o aparato
estatal está tomando, tempestivamente e com aparente competência, as
providências cabíveis no Estado de direito democrático), mas nem por isso pode
ser o elemento redutor de um movimento
social mais profundo, cujas características, motivos e desdobramentos
estão acicatando as interpretações de cientistas sociais e de exegetas em
geral.
Recuperando conceitos cristãos e
humanitários de um verdadeiro evangelizador, homem de Deus, o arcebispo e
intelectual Helder Câmara, mestre Janine condena a “violência” daqueles que
recorreram à violência da “luta armada” contra o regime militar brasileiro. O
padre, continuo lendo o professor, era contrário a essa violência “dizendo que
bom no uso das armas é quem já pratica a violência, a número 1. Vai um
estudante de Ciências Sociais vencer no tiro um atirador do Exército? Sem
chance!”. E qual a alternativa? A
palavra, ensinam-nos Janine e D. Helder.
Penso que a sanção aos meios, no
caso, não pode derivar de sua efetividade, mas do dever moral (íntimo,
subjetivo) do indivíduo indignado levado a reagir.
Na França invadida, os maquis (em
condições abissalmente desfavoráveis em face do exército nazista) optaram pela guerra, a guerra de
guerrilha, a sabotagem e, se quiserem, o terrorismo. Assim agiram Mandela e seus companheiros de guerrilha na
África do Sul do apartheid. Foram absolvidos pela História, como heróis, quase
sempre heróis mortos em combate. No julgamento moral de outros tantos,
políticos, militares, intelectuais e civis, a opção mais lógica foi o
colaboracionismo. No caso brasileiro, o meio revelou-se, no plano da guerra, da
estratégia de combate à ditadura, ineficaz. Mas a ineficiência não lhe suprimiu
a razão moral.
É evidente que a violência da guerra
destruiu a violência do nazismo, mas não só ele. Foi a violência que garantiu a
abolição dos escravos nos EUA da Guerra da Secessão, por exemplo, e foi a
violência da Revolução Francesa que doou ao mundo o “século das luzes”. Isso entre tantos
exemplos históricos.
Não creio, porém, que tenha sido a
“palavra” que derrubou em nosso continente as ditaduras argentina e chilena,
para citar as mais conspícuas. Nem as
sanguinárias ditaduras de Batista em Cuba e dos Somoza na Nicarágua.
Como ignorar prisões, torturas, assassinatos, exílios, banimentos?
Nem foi a palavra, mas foram lutas de
libertação nacional que derrotaram as tropas portuguesas na África. Há mesmo um
certo idealismo em considerar que a palavra “derrotou o comunismo”. Se a
referência é à ditadura soviética, de viés estatista e não socializante, é
quase pueril ignorar o papel, este sim revolucionário, da crise econômica
abalando em suas raízes aquele capitalismo de Estado, como é injustificável
ignorar o papel dissolvente da Guerra Fria e das guerras quentes que o abalado
império soviético teve de enfrentar na luta de vida e de morte imposta pelo
império americano e seus aliados (OTAN à frente).
Em um ponto, e talvez seja esse o essencial,
estamos de acordo: a violência física, na hipótese brasileira, serve, hoje,
apenas, aos que pretendem alimentar o discurso e a ação da direita. Mas onde
ela está? A violência, no quadro brasileiro de hoje, precisa ser combatida,
sim, e a primeira providência é não permitir que a direita protofascista
confunda, na opinião pública, a ação das massas na rua com violência, para que
assim acolha a violência do aparato repressivo como simples reação de defesa.
Como “violência gera violência”, a
direita fascista precisa da violência das ruas para exercer a violência que lhe
é própria.
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