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Continuando o debate sobre
a (não) redução da idade penal
(Eduardo Hirata)
Nos 25 anos do ECA/Estatuto
da Criança e do Adolescente, o tema em discussão nacional é sobre a maioridade
penal: reduzir ou manter?
Leiamos a seguir o
posicionamento de uma juíza de direito:
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Reduzir a maioridade é
sinal de desprezo pela criança e adolescente, diz juíza
Para Dora Martins, juíza da Vara de
Infância, é preciso cumprir as políticas públicas para menores previstas no
Estatuto da Criança e do Adolescente; ela aponta que “garantias do ECA serão
eliminadas se maioridade penal for reduzida”
16/07/2015
(Por
José Coutinho Júnior, da Redação do jornal “Brasil de Fato”,SP.
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Nesta
semana, mais um capítulo do debate sobre a internação de adolescentes em
conflito com a lei ocorreu no Congresso. Enquanto o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) completava 25 anos, na última segunda-feira (13), o Senado
Federal aprovou, no dia seguinte, proposta que aumenta a internação de menores
infratores de três para dez anos.
Para
a juíza da Vara da Infância e Juventude Dora Aparecida Martins, apesar dos
avanços do ECA, que é responsável pela garantia de direitos e execução de
políticas públicas para crianças e adolescentes, ainda há muitas outras
políticas que devem ser implantadas.
Em
relação à proposta aprovada no Senado, Dora afirma que “internação não é pena.
O adolescente internado deve receber a educação que não recebeu, ser tratado com
trabalho psicológico, para poder voltar à sociedade melhor do que quando
entrou. Qual a lógica então de aumentar o tempo da internação?”, indaga.
A
juíza também alerta que a proposta de reduzir a maioridade penal de 18 para 16
anos, aprovada recentemente na Câmara dos Deputados, vai eliminar muitas das
garantias e direitos do ECA. “O adolescente vai estar exposto a uma série de
riscos, mas é isso mesmo que acontece quando se reduz a maioridade”.
Confira
a entrevista:
Brasil de Fato - Como você avalia o ECA nesses 25
anos?
Dora Martins - O ECA é um instrumento importantíssimo. Ele surge
dois anos depois da constituição, em 1990, refletindo tudo que tinha sido
criado com os tratados internacionais em relação aos direitos humanos das
crianças e dos adolescentes. Esse é o avanço do ECA. Ele transforma a criança
em um sujeito de direito, o que exige toda uma mudança na forma do tratamento
da criança e do adolescente, e a implementação de políticas públicas para
garantir esses direitos. Antes, a Febem reunia infratores e abandonados no
mesmo espaço, sem distinção, porque as crianças eram uma coisa só: um problema
que, quando aparecia, se resolvia.
As políticas do Estatuto foram implantadas na sua
totalidade?
Os
direitos que o ECA trouxe foram muitos. Direito à vida, a morar num ambiente
salubre, à escola, à saúde, ao lazer, à consciência familiar, e algumas leis
que decorreram depois do ECA vêm reforçando isso. Muitas políticas públicas
avançaram no cumprimento ao ECA, mas, no meu entender, ele ainda não foi totalmente
aplicado e respeitado. Não se deu efetividade para tudo que ele prevê em
relação à proteção da criança, para que elas possam se desenvolver.
Que políticas do Estatuto são importantes, mas que
ainda não foram cumpridas?
A
questão da escola é importante. Mais creches, atenção à saúde, com metas que
devem diminuir a mortalidade infantil e materna.
Além
disso, é preciso estabelecer os conselhos tutelares. 44 % dos municípios
brasileiros não tem conselhos tutelares e onde tem não funciona direito.
Vivemos em uma sociedade em que acreditamos que é o Judiciário que vai dar as
respostas. O promotor, o delegado, o juiz vão dar a solução. O conselho tutelar
aparece como um representante da própria comunidade, que vai buscar a solução
ali mesmo, impedindo que uma determinada situação chegue ao Judiciário.
Precisamos de uma rede social montada para aplicar políticas públicas em prol
das crianças, e os conselhos são partes importante desta rede. São eles que vão
apresentar o problema e buscar resolvê-lo. Mas a sociedade não sabe o papel
deles ainda; nem as pessoas que são parte dos conselhos estão apoderadas do seu
papel.
Por que essas políticas não são implantadas?
Um
dos motivos é a falta de verbas destinadas às políticas para jovens e
adolescentes. Uma cidade como São Paulo, por exemplo, tem 100 mil crianças fora
da creche. Lógico que nenhum governo vai construir tudo isso em três meses ou
um ano. Não colocamos tudo que o Estatuto prevê na prática, e os críticos dele
falam que ele precisa ser reformado. Existe um descaso com essas políticas há
muitos anos. O ECA é uma ferramenta muito precisa para garantir direitos; ele
não é o problema, é a solução.
E por que não há verba para as
políticas do Estatuto?
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Crédito
foto:Reprodução/ TJ-SP
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Essa
pergunta tem que ser feita pro Executivo. Além de todos interesses políticos
que podem existir nesse não investimento, tenho uma percepção de que se
preserva no poder público que representa a nossa sociedade um olhar de desprezo
sobre a criança e o adolescente. Muita gente diz defender, todos concordam que
é importante investir nas crianças, mas, no fundo, há um local não nobre, não
digno, para a criança e o adolescente. Por isso, os governos acabam não
priorizando a educação e saúde das crianças.
Há
um tempo, julguei uma ação contra o estado de São Paulo, que fechou várias
Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) neonatais de hospitais públicos da cidade
porque não tinha médico. O médico passava no concurso, abandonava o emprego
porque não queria trabalhar na periferia, e fechavam a UTI. Não tem lógica
isso, tem que dar um jeito de colocar o profissional lá e cumprir a política
pública, não fechar a UTI e ignorar o problema. Tem criança nascendo lá, que
precisa de cuidado. É um olhar de desprezo.
O
Estado tem que olhar para a infância, e reverter o orçamento para isso. O ECA e
tratados internacionais falam que os direitos das crianças têm que ser
atendidos com preferência, pois são mais importantes que qualquer outro, por
ser tratar de seres em formação. Não há desculpa para o Estado não oferecer
para essa faixa etária toda a preferência do orçamento.
Uma proposta para reduzir a maioridade penal foi
aprovada na Câmara dos Deputados recentemente. Como você analisa isso, pensando
nos direitos defendidos pelo ECA?
Diminuir
a maioridade penal é uma falácia. Há muitas estatísticas que mostram que 1% dos
crimes violentos são cometidos por menores e, de repente, a redução aparece
como a solução para toda a violência do país. Se você coloca hoje um
adolescente na prisão, com máfias organizadas dentro do sistema penitenciário
brasileiro, só vai retroalimentar esse sistema. Não vai produzir nenhum cidadão
bom. É muito louco que a sociedade acredite que a prisão é a única solução.
Temos uma sociedade doente, que descarta os cidadãos indesejados na cadeia,
achando que é lá que ele vai ficar para sempre. Os ataques ao ECA no âmbito
desse debate, de que ele “passa mão na cabeça de adolescente bandido”, são
igualmente ignorantes. Temos que lutar para efetivar o ECA, não para que ele
seja modificado como se fosse algo precário, ruim.
Existem outras propostas para, ao invés de reduzir
a maioridade penal, aumentar o tempo de internação de jovens infratores.
As
Fundações Casa estão distantes de atender o que o ECA prevê, que é ressocializar
a criança, prepará-la para voltar a viver na comunidade. Ressocializar não é
prender, mas o que temos na Fundação é uma prisão, abjeta, que descumpre todos
direitos do adolescente e faz com que o adolescente retorne pior do que entrou.
A internação tem que ser vista de outra forma. Internação não é pena. Pena é
prender o cara porque supõe-se que ele seja adulto e fique na cadeia refletindo
sobre o crime dele. A internação tem outro propósito. O adolescente vai receber
a educação que não recebeu, vai ser tratado, com trabalho psicológico, para
poder voltar à sociedade melhor do que quando entrou. Qual a lógica então de
aumentar o tempo da internação?
O que deve ser feito para, de fato, ressocializar
um jovem infrator à sociedade?
O
que é um jovem infrator? Recebi um menino aqui na Vara da Infância, semana
passada. Veio com a mãe. Ele tinha 11 anos e a mãe disse que não aguenta mais o
filho. Imaginava que veria uma criança bem grande, mas ele era tão miúdo que
parecia ter sete anos. A mãe disse que ele já apronta todas. Ele tem um irmão
que está no sistema penitenciário, que o alertou para não virar bandido. E ele
já disse para a mãe que não quer ser bandido. Mas ele não para na escola, vive
na rua, tem péssimas companhias, o que podemos fazer para evitar que esse
menino venha cair no mundo? Ele mora num cortiço com a mãe, uma escola pública
com 40 alunos na sala não oferece para ele nenhum atrativo. Que professor é
capaz de captar esse menino na realidade dele e que ele ache uma saída através
da escola?
Ele
estava apavorado porque não queria ir para o abrigo, e a mãe insistia que em
casa ele não ficava. É uma criança que já está num estado de abandono, porque a
mãe quer se livrar dele. Vamos supor que daqui dois anos ele apronte e vá para
a Fundação Casa. O que a Fundação tem a oferecer para ele? Ela deveria garantir
escolaridade, o tratamento psicológico, com uma psicóloga que deve ser boa para
entender a alma desse menino. Precisaria de uma rede realmente funcionando para
ajudar essa mãe, e isso não existe.
O
Estado tem que, não só resolver o problema desse menino, mas olhar para o
problema de um modo coletivo e amplo; começar uma política eficiente de
escolarização, com professores bem pagos e conscientes para trabalhar nessas
comunidades carentes, não só de bens materiais, mas de valores e afetos. E se
um moleque vai preso por roubar ou matar, ele tem que ser tratado como moleque.
Precisamos
de uma estrutura capaz de entender o que faltou para ele, o que é preciso
complementar e fazer. Dentro da Fundação Casa, ele precisa ser olhado
individualmente, para saber sua história como indivíduo e o que levou esse
adolescente a fazer o que fez, porque ele está em processo de formação, e há
uma justificativa e algo a ser feito ainda por ele.
Agora,
se você olha para esse moleque como se fosse um bandido, e quando ele chega na
Fundação ele é estuprado, castigado, vai para a solitária, tem a cabeça raspada
do cabelo que ele gostava tanto, apanha, você vai destituindo ele da
individualidade. É o que a Fundação Casa faz cotidianamente, trata todo mundo
como um bando de carneiro. Você vai falar que é muito difícil fazer tudo isso.
Eu também acho. Estamos muito longe de executar tudo isso, mas é o que tem que
ser feito.
A redução da maioridade penal pode ter efeitos no ECA?
A redução vai ter reflexos graves. Se um
adolescente pode ser responsável criminalmente, ele não pode mais ser uma
vítima protegida. O adolescente vai estar exposto a uma série de riscos, mas é
isso mesmo que acontece quando se reduz a maioridade. As garantias do ECA vão
ser eliminadas. É um desprezo pela criança e pelo adolescente, que vai contra
toda essa construção e reconhecimento dos direitos que construíram o Estatuto.
Que cidadão você vai construir a partir disso?
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