segunda-feira, 3 de março de 2014

Ferrovia e mineração, casamento impotente diante da pobreza brasileira




Enquanto “aproveitamos” o carnaval, a Vale segue seu plano, de exportar milhões a mais de toneladas de minério de ferro e outras riquezas minerais, através da duplicada estrada de ferro Carajás (EFC), até 2018.

E Açailândia do Maranhão, de “carona” nesse grande “progresso”, fruto do “PGC/Projeto Grande Carajás”  busca realizar a predição da revista Veja, de que muito breve será uma das 20- vinte- metrópoles regionais brasileiras...

Enquanto isso, quem paga o “ônus do progresso”? Quem morre atropelado, ou tem seu gado atropelado, ou sua moradia rachada, ou sua comunidade ferozmente impactada: o barulho, o vai e vem de caminhões e máquinas pesadas,  o treme-treme, as centenas de trabalhadores forasteiros...

Em verdade, trinta anos de EFC, e tal do progresso transformou em quê, no quê, as realidades do Distrito Industrial do Pequiá, aqui em Açailândia; ou das comunidades de Nova Vida, Presa de Porco, ou as apontadas no artigo a seguir, da revista Carta Capital?

(Eduardo Hirata)


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Brasil profundo

Ferrovia e mineração, casamento impotente diante da pobreza brasileira

Três décadas depois de sua construção, o corredor de Carajás continua sendo provedor de mão de obra barata para regiões mais prósperas e grandes projetos amazônicos

(por Envolverde — publicado 03/03/2014, na revista Carta Capital)

(na foto, de Mario Osava/IPS, vendedores informais oferecem comida e bebida aos passageiros da Ferrovia Carajás, na estação de Alto Alegre de Pindaré, no noroeste do Estado do Maranhão)

A Ferrovia Carajás, considerada a mais eficiente do Brasil, mantém um serviço de passageiros que lhe causa perdas, para beneficiar a população. Porém, isso pouco alivia seu pecado original: nasceu para exportar minerais, cruzando uma região de pobreza crônica. Três décadas depois de sua construção, o corredor de Carajás, por onde passa um terço do minério de ferro exportado pelo Brasil, continua sendo provedor de mão de obra barata para regiões mais prósperas e grandes projetos amazônicos, segundo a IPS constatou ao percorrer a área.

Auzilândia, povoado de 12 mil habitantes e humildes casas dos dois lados dos trilhos, “fica vazia” ao final de cada ano, segundo Leide Diniz. Seu marido foi, “pela segunda vez”, para o Estado de Santa Catarina, mais de três mil quilômetros ao sul, viajando três dias em ônibus. Deixou seus três filhos com ela em novembro, para trabalhar em um restaurante durante a temporada turística de verão. “Ganha e volta”, se conforma a mulher, porque “aqui não tem emprego”, explicou.

Uma corrente estabelecida há alguns anos leva para Santa Catarina a maioria dos trabalhadores errantes de Alto Alegre do Pindaré, município de 31 mil habitantes onde fica Auzilândia, no interior do Maranhão, Estado de transição do semiárido Nordeste do país para a Amazônia.

O Maranhão, por onde passam dois terços dos 892 quilômetros da Ferrovia Carajás, continua enviando trabalhadores para muitas regiões do país, em geral para tarefas temporárias ou precárias, como mineração de ouro artesanal na Amazônia ou corte de cana-de-açúcar. Também é a principal origem das vítimas da escravidão moderna, especialmente na pecuária e no carvão vegetal. Seu Índice de Desenvolvimento Humano está em penúltimo lugar entre os 27 Estados brasileiros, e sua renda por pessoa está em último.

A Ferrovia Carajás e sua empresa concessionária, a transnacional brasileira da mineração Vale, terão uma nova oportunidade para ajudar o desenvolvimento local. Está em andamento a duplicação de seu traçado, até agora de via única, e da extração na Serra de Carajás, no Pará. A partir de 2018, serão extraídos 230 milhões de toneladas anuais do minério de mais alto teor de ferro do mercado mundial.

A ampliação se estende ao porto de águas profundas Ponta da Madeira, em São Luís, capital maranhense, por onde é exportada a produção de Carajás, que compreende também manganês, cobre e outros minerais, e que converte a Vale na segunda empresa mundial do setor. O investimento exigido é de US$ 19,5 bilhões, a maior parte em logística.

Em seu apogeu, a construção empregará 8.645 trabalhadores, segundo a Vale. Os empregos permanentes, quando entrar em operação a duplicação da ferrovia, serão 1.438 e a prioridade é contratar gente local, promete a empresa. Uma fraca alavanca para o desenvolvimento em um corredor tão extenso. A ajuda mais significativa virá de investimentos sociais da empresa, cujo lucro está entre os maiores do Brasil.

Um novo projeto de lei sobre mineração, que será aprovado este ano, forçará a que uma pequena parte desse dinheiro beneficie os municípios que sofrem os impactos diretos de sua atividade. Para garantir esse e outros recursos e aproveitá-los melhor, os 23 municípios do Maranhão pelos quais o trem passa se juntarão para coordenar suas ações e sua relação com a Vale.

A empresa fez um diagnóstico de interesses econômicos locais, com o desenho de “projetos para cada microrregião ao longo da ferrovia”, informou o diretor de Operações Logísticas da Vale, Zenaldo Oliveira. Em uma comunidade pode-se adequar uma fábrica de farinha de mandioca, e em outra, fruticultura e sucos, citou como exemplo. A Vale, fundada pelo Estado em 1942 e privatizada em 1997, só apoia iniciativas em educação, saúde e geração de renda, detalhou Oliveira, pois é onde estão as maiores carências que travam o desenvolvimento local.

Atualmente, com apenas uma via para os dois sentidos, 12 trens de carga ligam diariamente Carajás com São Luís. Afirma-se que são os mais longos do mundo, com 330 vagões, quatro locomotivas e cada um carregado com mais de 30 mil toneladas de minerais, mais de cem milhões de toneladas por ano. Os trens voltam carregados de combustíveis, fertilizantes e outros produtos de consumo no interior.

Os trens de passageiros, a preços subsidiados porque “a população local não pode pagar seu custo real”, é “um benefício social” de transporte barato e permanente em uma região onde as chuvas costumam fechar estradas, pontuou Oliveira. Em suas 15 paradas, especialmente em Alto Alegre do Pindaré, uma multidão de vendedores, na maioria mulheres, se aproxima das janelas para oferecer água gelada e alimentos aos 360 mil passageiros anuais da ferrovia.

Esse precário sustento pode desaparecer com o novo projeto, porque os vagões terão ar-condicionado e suas janelas permanecerão fechadas. “Buscaremos soluções” antes da substituição, talvez organizando cooperativas de fornecedores, disse o diretor da Vale.

Em Alto Alegre opera há tempos a Cooperativa de Trabalhadores e Vendedores, cuja fundação a Vale apoiou e que chegou a vender comida na cantina do trem há dez anos, mas “por pouco tempo”, segundo sua diretora, Alice Cunegundes, de 58 anos e três filhos. Depois a Cooperativa, que chegou a ter 93 sócias, fornecia até três mil refeições diárias à prefeitura, até que o atual prefeito, eleito em 2012, cancelou o acordo, “prejudicando a iniciativa”, lamentou.

Apoiar os empreendedores, melhorar escolas e capacitar milhares de operários são algumas das ações sociais e ambientais da Vale e de sua Fundação. No entanto, “são projetos pontuais, que não incentivam o desenvolvimento efetivo do território”, ressaltou George Pereira, secretário-executivo da Associação Comunitária Itaqui-Bacanga, cuja fundação e sede, também “produtos de investimentos sociais da Vale”, servem aos 58 bairros em torno do porto Ponta da Madeira.

Além disso, estão longe de compensar os danos à população do corredor de Carajás, segundo a Justiça sobre Trilhos, campanha de movimentos sociais e religiosos que defende direitos das populações afetadas pela ferrovia. Em 2012, suas denúncias e as da Articulação Internacional dos Afetados pela Vale conseguiram atribuir à empresa o prêmio Olho Público, criado por organizações internacionais como Greenpeace para apontar as transnacionais que mais violam os direitos humanos e as normas ambientais, segundo milhares de votantes.

Acidentes fatais, contaminação com pó dos minerais e rachaduras nas casas próximas à via são alguns desses impactos. A ferrovia paga seus próprios pecados e os de sua parceira perfeita, a mineração de ferro.

Também faz parte do Programa Grande Carajás, um conjunto de empresas de mineração, aço, alumínio, celulose, pecuária e hidroeletricidade com que o governo pretendeu desenvolver a Amazônia oriental nos anos 1980. Esse programa deixou desmatamento acelerado, contaminação letal onde se concentrou a indústria do ferro gusa, trabalho escravo e outras violências, enquanto o desenvolvimento humano pouco avançou, segundo as estatísticas.

Acidentes, apesar das medidas de segurança

Os avós trabalhavam na plantação, a mãe descascava arroz no pilão e o irmão mais velho cortava o cabelo. Ninguém se deu conta de que o menino de 15 meses cruzou o quintal engatinhando, atravessou o portão e chegou aos trilhos, a poucos metros de distância. Assim contou Leidiane de Oliveira Conceição a tragédia que lhe tirou seu filho. “O trem da Vale para mim é só perda. O pior foi matar meu neto, mas também tive atropeladas 14 vacas prenhas de uma só vez”, acusou o avô, Evangelista da Silva, que também reclama uma indenização pela terra que a ferrovia ocupou.

Os trens da Vale são considerados os mais seguros do Brasil. A segurança inclui cancelas eletrônicas, viadutos, campanhas de informação e rondas de 24 horas de vigilantes que retiram “mais de 80 pessoas por mês” de situações de risco, como bêbados e deficientes visuais, segundo Elmer Vinhote, supervisor do Centro de Controle de Operações da Ferrovia Carajás. Os atropelamentos e choques caíram de 20, em 2009, para “três ou quatro” por ano atualmente, assegurou.

Mas os desastres e as disputas judiciais parecem inevitáveis. A mãe de Mario Farias morreu atropelada em 1996 e ainda não chegou a indenização. Em Auzilândia, um idoso bêbado foi salvo pela “ronda” há alguns meses, segundo moradores locais. Dezenas de famílias se queixam de rachaduras em suas casas, devido à construção de um viaduto sobre os trilhos e pedem novas casas, mais longe, ou uma indenização.


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