“Eduardo, não tá tendo
uma crise aqui em Açailândia, todo mundo se queixando nos negócios, nos
empregos, com a saúde e o ensino público, com a infra-estrutura e o saneamento
cada vez mais pior, com a poluição sonora, com a criminalidade e a violência, com
o desrespeito crescente às pessoas com deficiências, idosas e com mobilidade
reduzida, gradualmente expulsas do
centro da cidade pelo trânsito, pelos desníveis criminosos das calçadas, pelas
barracas e tabuleiros de vendedores(as) e merendeiros(as), etc, etc ?”
Foi recente
questionamento que me fez um líder comunitário, ao acrescentar: “... e mesmo
com tanta coisa ruim, como é que pode todo este movimento de gente, este mar de
pessoas no centro da cidade? Filas em tudo quanto lugar, dos bancos até os
supermercados, tem hora que as calçadas ficam cheias...”.
Bom, não tinha como
responder e saquei: “... é o tal do progresso, meu caro, afinal já se previu
que nossa cidade será muito em breve uma das vinte metrópoles regionais do
Brasil... Já pensou?...”.
Mas o artigo a seguir,
publicado no jornal “Brasil de Fato”, de autoria de Paulo Bufalo, certamente
vai contribuir para as explicações...
(Eduardo Hirata)
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O que sobra é gente!
Não há espaço nesta
sociedade para ninguém que não tenha capacidade de consumo, embora exista um
imenso contingente de pessoas que, no atual modelo econômico, jamais
conseguirão sequer ter acesso ao necessário para sobrevivência
(Por Paulo Bufalo, no jornal “Brasil
de Fato”, SP. Em 13/03/2014)
A notável frase de Eduardo Galeano no livro
“As Veias Abertas da América Latina” (1971), mais de quatro décadas depois,
escancara a atual crise econômica e social pela qual passa a humanidade: O
sistema não previu esta pequena chateação: o que sobra é gente. E gente se
reproduz. Faz-se o amor com entusiasmo e sem precauções. Cada vez mais, fica
gente a beira do caminho, … o sistema vomita homens.
Nas últimas décadas faltam adjetivos
para caracterizar o “santo” mercado, ou melhor, o aclamado livre mercado, um
dos principais pilares do neoliberalismo. Ele continua sendo exaltado por seus
defensores, pela sua capacidade de auto regulação e estabilização das relações
de compra e venda de mercadorias. Sua liberdade é acompanhada, inclusive, de
personificação. O mercado fica tenso, aquecido, às vezes até calmo mas, sempre
envolvendo coisas e pessoas.
Na prática, a qualquer sinal de abalo
aos padrões de acumulação de dinheiro por aqueles que já o tem, em quantidade
muito maior do que necessitam, o mercado fica mais nervoso e, quando isso
acontece, vai-se logo adotando remédios para recuperar os valores perdidos e
assim tranquilizá-lo.
Em geral esses remédios são muito
amargos para aqueles que têm como única alternativa de sobrevivência, a venda
de sua força de trabalho. Isso se traduz na superexploração do trabalho humano
e na espoliação da natureza, cujos impactos ambientais embora generalizados,
recaem muito mais sobre as pessoas submetidas à pobreza.
Esse caráter predatório do mercado é
conhecido e vivido no dia-a-dia das pessoas mas, é ignorado nas decisões
políticas e naturalizado nas relações sociais. Consolida-se um verdadeiro abismo
entre a minoria que lucra muito com o livre mercado e aqueles que, no máximo,
conseguirão ser incluídos como consumidores de mercadorias.
Não há espaço nesta sociedade para
ninguém que não tenha capacidade de consumo, embora exista um imenso contingente
de pessoas que, no atual modelo econômico, jamais conseguirão sequer ter acesso
ao necessário para sobrevivência.
Pelo lado de quem lucra com o livre
mercado não há qualquer pudor em ampliar seu acúmulo de dinheiro e isso tudo
justifica: corrupção de governantes e financiamento de campanhas eleitorais,
sonegação, destruição ambiental, desrespeito às leis, trabalho escravo, trabalho infantil (grifo meu), geração de lixo, baixa qualidade de ensino e saúde, uso de agrotóxicos,
entre tantos outros exemplos.
Um contrassenso é que o Estado, a
quem caberia a proteção e garantia de direitos à imensa maioria da população
que vive do trabalho, com raríssimas exceções, protege e garante direitos à
minoria abastada que, direta ou indiretamente, vive da exploração do trabalho e
de negócios especulativos.
A garantia do bom humor do mercado
passa pelo equilíbrio desse sistema, mas, sua liberdade vai muito além da livre
troca de mercadorias. Ele dita o modo de vida, a organização e os valores de
uma sociedade. As pessoas são respeitadas pelo patrimônio material que acumulam
e isso determina o comportamento social.
O modelo de sociedade de livre
mercado, que orienta as ações dos governos neoliberais gera excedentes humanos
não contabilizados nos índices oficiais e alimenta um quadro social
verdadeiramente explosivo, onde os valores humanos são corroídos
cotidianamente.
O Estado, dominado pelos interesses
dos abastados, mantém esforços permanentes para preservar a ilusão de conforto
e paz social, mas a realidade revela-se no aumento de ocorrências de machismo,
racismo e homofobia, de formas violentas na resolução de conflitos, de
assassinatos da juventude pobre e negra pela própria estrutura estatal, entre
outros.
Atualmente no
Brasil, há cerca de 1,9 milhões de adolescentes, entre 15 e 17 anos, que
deveriam estar matriculados no ensino médio mas, estão fora da escola. (grifo meu). Há ainda cerca de 6 milhões de jovens, entre 18 e 25
anos, chamados de “nem nem”, porque não estão nem na escola nem no trabalho. No
entanto, essas “sobras” continuam sendo disputadas pelos “valores” do livre
mercado.
É um cenário desafiador que remete à
reflexão sobre outro fragmento de Galeano: Quanto mais liberdade se outorga aos
negócios, mais carceres se tornam necessários construir para aqueles que sofrem
com os negócios.
Mas os governos neoliberais, fortes
na regulação das políticas econômicas e frágeis na garantia de direitos
sociais, parecem tomar essa ideia ao pé da letra e no ímpeto de garantir a
super acumulação de dinheiro e o livre mercado. Cada vez mais criam “cárceres”,
nem sempre visíveis, e seguem dando asas à corrosão cotidiana dos valores
humanos.
(Paulo Bufalo, Vereador
de Campinas e Presidente estadual do PSOL-SP)