sexta-feira, 14 de março de 2014

O QUE SOBRA É GENTE! (E indagações: o que explica tanto movimento de gente em Açailândia do Maranhão?)






“Eduardo, não tá tendo uma crise aqui em Açailândia, todo mundo se queixando nos negócios, nos empregos, com a saúde e o ensino público, com a infra-estrutura e o saneamento cada vez mais pior, com a poluição sonora, com a criminalidade e a violência, com o desrespeito crescente às pessoas com deficiências, idosas e com mobilidade reduzida,  gradualmente expulsas do centro da cidade pelo trânsito, pelos desníveis criminosos das calçadas, pelas barracas e tabuleiros de vendedores(as) e merendeiros(as), etc, etc ?”

Foi recente questionamento que me fez um líder comunitário, ao acrescentar: “... e mesmo com tanta coisa ruim, como é que pode todo este movimento de gente, este mar de pessoas no centro da cidade? Filas em tudo quanto lugar, dos bancos até os supermercados, tem hora que as calçadas ficam cheias...”.

Bom, não tinha como responder e saquei: “... é o tal do progresso, meu caro, afinal já se previu que nossa cidade será muito em breve uma das vinte metrópoles regionais do Brasil... Já pensou?...”.

Mas o artigo a seguir, publicado no jornal “Brasil de Fato”, de autoria de Paulo Bufalo, certamente vai contribuir para as explicações...

(Eduardo Hirata)

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O que sobra é gente!

Não há espaço nesta sociedade para ninguém que não tenha capacidade de consumo, embora exista um imenso contingente de pessoas que, no atual modelo econômico, jamais conseguirão sequer ter acesso ao necessário para sobrevivência

(Por Paulo Bufalo, no jornal “Brasil de Fato”, SP. Em 13/03/2014)

 A notável frase de Eduardo Galeano no livro “As Veias Abertas da América Latina” (1971), mais de quatro décadas depois, escancara a atual crise econômica e social pela qual passa a humanidade: O sistema não previu esta pequena chateação: o que sobra é gente. E gente se reproduz. Faz-se o amor com entusiasmo e sem precauções. Cada vez mais, fica gente a beira do caminho, … o sistema vomita homens.

Nas últimas décadas faltam adjetivos para caracterizar o “santo” mercado, ou melhor, o aclamado livre mercado, um dos principais pilares do neoliberalismo. Ele continua sendo exaltado por seus defensores, pela sua capacidade de auto regulação e estabilização das relações de compra e venda de mercadorias. Sua liberdade é acompanhada, inclusive, de personificação. O mercado fica tenso, aquecido, às vezes até calmo mas, sempre envolvendo coisas e pessoas.

Na prática, a qualquer sinal de abalo aos padrões de acumulação de dinheiro por aqueles que já o tem, em quantidade muito maior do que necessitam, o mercado fica mais nervoso e, quando isso acontece, vai-se logo adotando remédios para recuperar os valores perdidos e assim tranquilizá-lo.

Em geral esses remédios são muito amargos para aqueles que têm como única alternativa de sobrevivência, a venda de sua força de trabalho. Isso se traduz na superexploração do trabalho humano e na espoliação da natureza, cujos impactos ambientais embora generalizados, recaem muito mais sobre as pessoas submetidas à pobreza.

Esse caráter predatório do mercado é conhecido e vivido no dia-a-dia das pessoas mas, é ignorado nas decisões políticas e naturalizado nas relações sociais. Consolida-se um verdadeiro abismo entre a minoria que lucra muito com o livre mercado e aqueles que, no máximo, conseguirão ser incluídos como consumidores de mercadorias.

Não há espaço nesta sociedade para ninguém que não tenha capacidade de consumo, embora exista um imenso contingente de pessoas que, no atual modelo econômico, jamais conseguirão sequer ter acesso ao necessário para sobrevivência.

Pelo lado de quem lucra com o livre mercado não há qualquer pudor em ampliar seu acúmulo de dinheiro e isso tudo justifica: corrupção de governantes e financiamento de campanhas eleitorais, sonegação, destruição ambiental, desrespeito às leis, trabalho escravo, trabalho infantil (grifo meu), geração de lixo, baixa qualidade de ensino e saúde, uso de agrotóxicos, entre tantos outros exemplos.

Um contrassenso é que o Estado, a quem caberia a proteção e garantia de direitos à imensa maioria da população que vive do trabalho, com raríssimas exceções, protege e garante direitos à minoria abastada que, direta ou indiretamente, vive da exploração do trabalho e de negócios especulativos.

A garantia do bom humor do mercado passa pelo equilíbrio desse sistema, mas, sua liberdade vai muito além da livre troca de mercadorias. Ele dita o modo de vida, a organização e os valores de uma sociedade. As pessoas são respeitadas pelo patrimônio material que acumulam e isso determina o comportamento social.

O modelo de sociedade de livre mercado, que orienta as ações dos governos neoliberais gera excedentes humanos não contabilizados nos índices oficiais e alimenta um quadro social verdadeiramente explosivo, onde os valores humanos são corroídos cotidianamente.

O Estado, dominado pelos interesses dos abastados, mantém esforços permanentes para preservar a ilusão de conforto e paz social, mas a realidade revela-se no aumento de ocorrências de machismo, racismo e homofobia, de formas violentas na resolução de conflitos, de assassinatos da juventude pobre e negra pela própria estrutura estatal, entre outros.

Atualmente no Brasil, há cerca de 1,9 milhões de adolescentes, entre 15 e 17 anos, que deveriam estar matriculados no ensino médio mas, estão fora da escola.  (grifo meu). Há ainda cerca de 6 milhões de jovens, entre 18 e 25 anos, chamados de “nem nem”, porque não estão nem na escola nem no trabalho. No entanto, essas “sobras” continuam sendo disputadas pelos “valores” do livre mercado.

É um cenário desafiador que remete à reflexão sobre outro fragmento de Galeano: Quanto mais liberdade se outorga aos negócios, mais carceres se tornam necessários construir para aqueles que sofrem com os negócios.

Mas os governos neoliberais, fortes na regulação das políticas econômicas e frágeis na garantia de direitos sociais, parecem tomar essa ideia ao pé da letra e no ímpeto de garantir a super acumulação de dinheiro e o livre mercado. Cada vez mais criam “cárceres”, nem sempre visíveis, e seguem dando asas à corrosão cotidiana dos valores humanos.

(Paulo Bufalo, Vereador de Campinas e Presidente estadual do PSOL-SP)