terça-feira, 8 de julho de 2014

Quando vamos enforcar Zuñiga?



A comoção nacional em torno do drama de Neymar  - o vídeo da menininha chorando por ele “mamã cadê Neymar” fez gente chorar por aqui- não evitou um sentimento até de ódio contra o jogador colombiano causador da lesão, expondo uma das nossas facetas mais detestáveis e vergonhosas, a violência.

Futebol, gente brasileira, é esporte, e como tal precisa ser encarado, nada de extremismos e radicalizações, tipo guerra “patriótica”...

Como descrita no artigo a seguir:

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Quando vamos enforcar Zuñiga?

(Postado por José Antonio Lima,  revista 07/07/2014, Carta Capital)

Houvesse uma forca na Praça José de Alencar, em Fortaleza, Camilo Zuñiga, o lateral-direito da Colômbia que tirou Neymar da Copa do Mundo, estaria no cadafalso. É óbvio que o colombiano usou força excessiva na fatídica jogada, e que a ausência do camisa 10 na semifinal contra a Alemanha comove, mas a reação extrapolou os limites, e expôs alguns dos problemas (não só) brasileiros.

Os fatos mais chocantes foram os crimes na perseguição ao jogador. Ainda no Castelão, houve casos de xenofobia e ameaças a famílias colombianas, inclusive a crianças. Nada anormal para o país que, a cada quatro anos, normaliza a generalização de argentinos como face do demônio.

Na internet, se manifestou o típico racismo brasileiro, no estilo “não sou racista, tenho até amigos negros”. Para defender o “nosso preto” e sua vértebra fraturada, atacaram o “preto deles” e chamaram de macaco o algoz do jogador que, semanas antes, liderou uma campanha em defesa do colega hostilizado com uma banana.

Em um país onde jornalistas e autoridades já internalizaram a criminalização das famílias de foras-da-lei (e suspeitos), nada de estranho nas intimidações à mãe e à filha de Zuñiga, esta ameaçada de estupro.

O surto patriótico, e autoritário, teve também o uso do Direito como ferramenta para fazer valer uma justiça seletiva. Nenhum desvio em se tratando de Brasil. Houve quem sugerisse o confisco do passaporte de Zuñiga, e outras mentes brilhantes, como a do deputado federal Protógenes Queiroz (PCdoB-SP), cogitaram prender o jogador.

Dando guarida à caça a Zuñiga estavam os homens de bem, guardiões da moral como Luciano Huck, segundo quem Zuñiga é “um colombiano sem noção” e “carniceiro” e a webcelebridade Felipe Neto, que classificou o lateral de “sujo”, “criminoso” e “nojento”. A petista Luisa Stern, candidata a deputada federal no Rio Grande do Sul, desejou a morte de Zuñiga, enquanto o site Coluna Esplanada acusou o atleta de envolvimento com o narcotráfico.

Raros foram os sensatos que disseram ver maldade no lance sem precisar recorrer ao argumento de autoridade sem autoridade, a alegação de que apenas quem já jogou futebol poderia julgar a entrada de Zuñiga (e óbvio dar o veredicto de que ele foi mal-intencionado). A maioria acabou por interditar o debate e deslegitimar qualquer opinião que pudesse ser contrária à noção de que o colombiano deliberadamente atacou Neymar.

É bem possível, provável até, que o lateral colombiano tenha tido a intenção de machucar (não com essa gravidade) Neymar. Pouco antes do lance os dois estavam se estranhando, em mais um episódio de uma partida violenta, como foram todas as da seleção brasileira na Copa – a equipe de Luiz Felipe Scolari é a que mais fez e mais sofreu faltas em uma competição na qual a Fifa orientou os árbitros a economizarem cartões amarelos e vermelhos.

Em um ambiente nublado pelo ufanismo, esqueceu-se o fato de o juiz ter dado vantagem no lance (e portanto não ter considerado aquele um ato anti-desportivo); a ausência de indignação com a falta de Zuñiga por parte dos jogadores do Brasil, que inclusive deram sequência ao lance; o comentário pós-jogo de Felipão, segundo quem a entrada não foi intencional; e a afirmação, por parte do médico da seleção brasileira, de que a lesão de Neymar não é incomum no futebol. Esses fatos não inocentam Zuñiga, mas são indicações de que é plausível a possibilidade de o lance ser considerado “de jogo”. Outro indicativo é o fato de grande parte das reações indignadas ter surgido depois de o país ser abalado pela notícia da grave contusão de Neymar, não imediatamente após a falta de Zuñiga.

Futebol é drama, e a Copa do Mundo seu catalisador mais efetivo. O mundial trouxe à tona lados lindos do Brasil, mas levantou também aspectos indigestos de uma sociedade que não sabe exatamente como se portar diante da divergência e do devido processo legal. Convém celebrar o futebol, mas guardar as tochas, foices e garfos de feno.


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