Demos um dia, há milhares de anos, o salto da animalidade
para a humanidade, do inconsciente para o consciente, do impulso destrutivo
para a civilização. Mas esse salto ainda não se completou totalmente.
(Por Leonardo Boff,
jornal ‘Brasil de Fato’, SP, 21/05/2014)
Perversidades sempre
existiram na humanidade, mas hoje com a proliferação dos meios de comunicação,
algumas ganham relevância e suscitam especial indignação. O caso mais
clamoroso, nos inícios de maio de 2014, foi o linchamento da inocente Fabiane
Maria de Jesus em Guarujá no litoral paulista. Confundida com uma sequestradora
de crianças para efeito de magia negra, foi literalmente estraçalhada e
linchada por uma turba de indignados.
Tal fato constitui um
desafio para a compreensão, pois vivemos em sociedades ditas civilizadas e
dentro delas ocorrem práticas que nos remetem aos tempos de barbárie, quando
ainda não havia contrato social nem regras coletivas para garantir uma
convivência minimamente humana.
Há uma tradição teórica
que tentou dilucidar tal fato. Em 1895 Gustave Le Bon escreveu, quiçá por
primeiro, um livro sobre a “Psicologia das massas”. Sua tese é que uma
multidão, dominada pelo inconsciente, pode formar uma “alma coletiva” e passa a
praticar atos perversos que, a “alma individual”, normalmente jamais
praticaria. O norte-americano H. L. Melcken ainda em 1918 escreveu “A Turba” um
estudo judicioso sobre o fato e mostra a identificação do grupo com um lider
violento ou com uma ideologia de exclusão que ganha então um corpo própro e,
sem controle, deixa irromper o bárbaro que que ainda se aninha no ser humano.
Freud em 1921 retomou a questão com o seu “Psicologia das massas e a análise do
eu”. Os impulsos de morte, subsistentes no ser humano, dadas certas situações
coletivas, diz ele, escapam ao controle do superego (consciência, regras
sociais) e aproveitam o espaço liberado para se manifestar em sua virulência. O
indivíduo se sente amparado e animado pela multidão para dar vazão à violência
escondida dentro dele.
A análise mais
instigante foi feita pela filósofa Hannah Arendt. Em 1961 acompanhou em
Jerusalém todo o processo de julgamento do criminoso nazista Adolf Eichamann
por crimes contra humanidade. Arendt escreveu em 1963 um livro que irritou a
muitos:”Eichmann em Jerusalém:um relato sobre a banalização do mal”. Ela cunhou
a expressão “a banalização do mal”. Mostrou como a identificação com a figura
do “Führer” e as ordens dadas de cima podem
levar às piores barbaridades com a consciência mais tranquila do mundo. Mas não
só em Eichmann se expressa a barbárie. Também naqueles judeus que extravassavam
seu ódio a ele, exigindo os piores castigos, como expressão também de um mal
interno.
Que concluimos disso
tudo? Que um conceito realista do ser humano deve incluir também sua
desumanidade. Somos sapentes e dementes. Em outras palavras: a barbárie, o
crime, o assassinato pertencem ao âmbito do humano. Demos um dia, há milhares
de anos, o salto da animalidade para a humanidade, do inconsciente para o
consciente, do impulso destrutivo para a civilização. Mas esse salto ainda não
se completou totalmente.
Carregamos dentro de
nós, latente mas sempre atuante, o impulso de morte. A religião, a moral, a
educação, o trabalho civilizatório foram os meios que desenvolvemos para pôr
sob controle esses demônios que nos habitam. Mas essas instâncias não detém
aquela força que possa submeter tais impulsos às regras de uma civilização que
procura resolver os problemas humanos com acordos e não com o recurso da
violência.
Cumpre reconhecer que
vigora em nós ainda muita barbárie. Não diria animalidade, pois os animais se
regem por impulsos instintivos de preservação da vida e da espécie. Em nós
esses impulsos perduram mas temos condições de conscientizá-los, canalizá-los
para tarefas dignas, através de sublimações não destrutivas, como Freud e
recentemente, o filósofo René Girard com seu “desejo mimético” positivo tanto
insistiram.
Mas ambos se dão conta
do caráter misterioso e desafiante da persistência desse lado sombrio (pulsão
de morte em dialética com a pulsão de vida) que dramatiza a condição humana e
pode levar a fatos irracionais e criminosos como o linchamento de uma pessoa
inocente.
Todos pensamos nos
linchadores. Mas quais seriam os sentimentos de Fabiane Maria de Jesus,
sabendo-se inocente e sendo vítima da sanha da multidão que faz “justiça” com
suas próprias mãos? A questão principal não é o Estado ausente e fraco ou o
sentimento de impunidade. Tudo isso conta. Mas não esclarece o fato da barbaridade.
Ela está em nós. E a toda hora no mundo ela ressurge com expressões inomináveis
de violência, algumas reveladas pela Comissão da Verdade que analisa as
torturas e as abominações praticadas por tranquilos agentes do Estado de
terror, implantado no Brasil.
O ser humano é uma
equação ainda não resolvida: cloaca de perversidade para usar uma expressão de
Pascal e ao mesmo tempo irradiação de
bondade de uma Irmã Dulce na Bahia que aliviava os padecimentos dos mais miseráveis.
Ambas realidades cabem dentro desse ser misterioso – o ser humano – que sem
deixar de ser humano ainda pode ser desumano.
Temos que completar
ainda o salto da barbárie para a plena humanidade. A situação violenta do mundo
atual, também contra a Mãe Terra nos deixa apreensivos sobre a possibilidade de
um desfecho feliz deste salto. Só mesmo um Deus nos poderá humanizar. Ele
tentou mas acabou na cruz. Um dos significados da ressurreição é nos dar a
esperança que ainda é possível. Mas para isso precisamos crer e esperar.
(Eduardo Hirata)
Meu comentário:
(E como sempre, Leonardo Boff nos ensina, e muito...)
.....
Aqui em Açailândia do Maranhão, ‘tamos no mesmo barco...
Chacinas e linchamentos, sempre tivemos. Por último, a do
homem suspeito de matar um mototaxista. A classe o “achou” e o linchou,
exemplarmente...
Lembram-se do casal, ela adolescente, assassinado no “Plano
da Serra”, por taxistas, para “justiçar” um colega que teria sido assaltado e
morto pelo homem...
E por aí foi, e por aí vai... E “nem aí pro azar”, estão todos
impunes.
E teve “quase linchamentos” e outras atrocidades em nome da
“justiça popular”, já que a “justiça justiça” não funciona. Como por exemplo,
não muito distante no tempo, a do rapaz arrastado, em pleno dia, por ruas
centrais, amarrado pelos pés a uma moto, cena fartamente e espetaculosamente
divulgada na mídia...
Não é á toa que somos uma cidade civilizada, cristã, humana,
cidadã...
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