terça-feira, 4 de agosto de 2015

As crises da vida e a autorrealização







... "Qual o sentido disso tudo? Pura fatalidade irreformável? Ou não possui um sentido secreto? Despojamo-nos de tudo, até de nós mesmos no último momento da vida (morte), porque não fomos feitos para esse mundo nem para nós mesmos, mas para o Grande Outro que deve encher nossa vida: Deus! Deus vai, na vida, nos tirando tudo para nos reservar cada vez mais intensamente para si; pode até tirar-nos a certeza se tudo valeu a pena".

 * Como sugere Leonardo Boff, é momento de se preparar para o encontro...

(Eduardo Hirata)


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As crises da vida e a autorrealização




(Por Leonardo Boff, no “Jornal do Brasil”- RJ, 03/08/2015)




Quase só se fala de crise e crise das crises, aquela da Terra  e da vida, ameaçadas de desaparecer como  acenou o Papa Francisco em sua encíclicas sobre “o cuidado da Casa Comum”.


Mas tudo o que vive é marcado por crises: crise do nascimento, da juventude, da escolha do parceiro ou parceira para a vida, crise da escolha da profissão, crise do “demônio do meio-dia”como a chamava Freud que é a crise dos quarenta anos quando nos apercebemos que já estamos chegando ao topo da montanha e começa a sua descida.


Por fim a grande crise da morte quando passamos do tempo para a eternidade.

O desafio posto a cada um não é como evitar as crises. Elas são inerentes à nossa condição humana. A questão é como as enfrentamos: que lições tiramos delas e como podemos crescer com elas. Por aí passa o caminho de nossa autorrealização e de nossa maturidade como seres humanos.    
Toda situação é boa, cada lugar é excelente para nos medirmos conosco mesmo e mergulharmos em nossa dimensão  profunda e deixar emergir o arquétipo de base que carregamos (aquela tendência de fundo que sempre nos martela) e que através de nós quer se mostrar e fazer sua história que é também a nossa verdadeira história.

 Aqui ninguém pode substituir o outro. Cada um está só. É a tarefa fundamental da existência.

Mas sendo fiel neste caminhar, a pessoa já não está mais só. Construiu um Centro pessoal a partir do qual pode se encontrar com todos os demais caminhantes. De solitário faz-se solidário.   
A geografia do mundo espiritual é diferente daquela do mundo físico. Nesta os países se tocam pelos limites. Na outra, pelo Centro.

 É a indiferença, a mediocridade, a ausên­cia de paixão na busca de nosso EU profundo que nos distancia de nosso  Centro e dos outros e assim perdemos as afinidades, embora estejamos ao lado deles, no meio deles e pretendendo estar a serviço deles.   

Qual é o melhor serviço que posso prestar às pessoas? É ser eu mesmo como ser-de-relações e por isso sempre ligado aos outros, ser que  opta pelo bem para si e para os outros, que se orienta pela verdade, ama e tem compaixão e misericórdia.


A realização pessoal não consiste na quantificação de capacidades pessoais que podem ser realizadas, mas na qualidade, no modo como fazemos bem aquilo que a vida situada nos cobra.

 A quanti­ficação, a busca de títulos, de cursos sem fim, pode significar em muitas pessoas a fuga do encontro com a tarefa de sua vida: de se medir consigo mesmo, com seus desejos, com suas limitações, com seus problemas, com suas positividades e negatividades e integrá-los criativamente.

 Foge no acúmulo do saber inócuo que mais ensoberbece e afasta dos outros do que nos amadurece para poder compreender melhor a nós mesmos e o mundo.

A linguagem trái estas pessoas que dizem: sou eu que sei, sou eu que faço, sou eu que decido. É sempre o o eu  e nunca o nós ou a causa, comungada também por outros.

A realização pessoal  não é obra tanto da  razão que dis-corre sobre tudo, mas do espírito que é nossa capacidade de criar visões de conjunto e de ordenar as coisas em seu justo lugar e valor.

 Espírito é descobrir o sentido de cada situação. Por isso é próprio do espírito a sabedoria da vida, a vivência do mistério de Deus, decifrado em cada momento. É a capacidade de ser todo em tudo o que  faz.

 Espiritualidade não é uma ciência ou uma técnica, mas um modo de ser inteiro em cada situação.

A primeira tarefa da realização pessoal é aceitar  a nossa situação com seus limites e possibilidades. Em cada situação está tudo, não quantitativamente dis-tendido, mas qualitativamente recolhido como num Centro. Entrar nesse Centro de nós mesmos é encontrar os outros, todas as coisas e Deus.

 Por isso dizia a velha sabedoria da Índia: “Se alguém pensa corre­tamente, recolhido em seu quarto, seu pensamento é ouvido a milhares de quilômetros de distância”. Se quiseres modificar os outros, comece por modificar-te a ti mesmo.

Outra tarefa imprescindível para a realização pessoal é saber con-viver com o último limite que é a morte. Quem dá sentido à morte,  dá sentido também à vida. Quem não vê sentido na morte também não descobre sentido na vida. Morte porém é mais que o último instante ou o fim da vida. A vida mesma é mortal.

 Em outras palavras, vamos mor­rendo lentamente, em prestações, porque quando nascemos começamos já a morrer, a nos desgastar e nos despedir da vida. Primeiro nos despedimos do ventre materno e morremos para ele. Depois nos despedimos da infância, da meninice, da juven­tude, da escola, da casa paterna, da idade adulta, de algumas de nossas tarefas, de cada momento que passa e por fim nos despedimos da própria vida.


Esta despedida é um deixar para trás não apenas coisas e situações, mas sempre um pouco de nós mesmos. Temos que nos desapegar, nos empobrecer e esvaziar.

 Qual o sentido disso tudo? Pura fatalidade irreformável? Ou não possui um sentido secreto? Despojamo-nos de tudo, até de nós mesmos no último momento da vida (morte), porque não fomos feitos para esse mundo nem para nós mesmos, mas para o Grande Outro que deve encher nossa vida: Deus! Deus vai, na vida, nos tirando tudo para nos reservar cada vez mais intensamente para si; pode até tirar-nos a certeza se tudo valeu a pena.

 Mesmo assim persistimos, crendo nas palavras sagradas:”Se teu coração te acusa, saiba que Deus é maior que teu coração”(cf. 1 Jo 3,20  ). Quem conseguir incorporar as negatividades, mesmo injustas, em seu próprio Centro, este alcançou o mais alto grau de hominização e de liberdade interior.

As negatividades e as crises pelas quais passamos, nos dão esta lição: de nos despojar e nos preparar para a total plenitude em Deus. Então, como diz o místico São João da Cruz: seremos Deus,  por participação.

* teólogo e colunista do JB online

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