(No DCM, 06/06/2016)
Viralizou na internet
nos últimos dias um bilhete de um pai para sua filha:
“Catarina, filhota, a
partir de hoje todos os dias vou mudar a senha do wifi de casa. Para receber a
senha de hoje precisas arrumar o quarto e lavar a louça. Papai que te adora.”
Ter se tornado viral
é a comprovação de que milhares de pessoas do mesmo estrato social do pai de
Catarina viram-se identificadas diante da incapacidade de controlar seus
rebeldes (e mimados) rebentos.
Quase
simultaneamente, dois meninos, um de 10 e outro de 11 anos, furtaram um carro
no bairro do Morumbi e, durante a fuga, Italo (10) acabou morto pela polícia
com um tiro na cabeça. Ele estaria dirigindo o veículo e também teria sido
o autor de disparos contra os policiais.
Perante a repetição
da divulgação da notícia e do elenco envolvido (pai presidiário e mãe
ex-presidiária), testemunhei reações do gênero: “que família boa hein”, “tá
explicado, tá no sangue”, “olha que santinho” e por aí afora. Preciso dizer que
se tratava de pertencentes da mesma turma que achou providencial o bilhete
endereçado a Catarina?
Pais e mães que não
conseguem fazer com que seus filhotes abastados e entediados pelo ócio sequer
lavem a louça não hesitaram um minuto em condenar de bate-pronto a família
do menino morto.
Italo, em sua longa
trajetória de uma década de vida na selva paulistana, nunca viveu em uma
‘casa’. Com os pais cumprindo pena atrás das grades, o menino dormiu na rua, em
casas de parentes, em abrigos. Chegou mesmo a viver num carro abandonado
durante um tempo. Qual foi a atenção que recebeu? O que lhe propuseram como
ajuda? Quem ofereceu amparo? Ninguém.
Italo aprendeu a se
virar. Afinal de contas, é preciso comer para sobreviver. Assaltava
supermercados com frequência (não o caixa, a gôndola com alimentos). Terminou a
quinta-feira dentro de um outro carro e este, infelizmente, não era abandonado.
Era de alguém e a polícia mais uma vez agiu de acordo com aquela grotesca
filosofia de proteção ao patrimônio.
A história toda está
repleta de inconsistências desde seus primeiros relatos. Como dois meninos
pulam o portão de um prédio de alto padrão no Morumbi, andam pela garagem à
procura de um carro que esteja aberto e com as chaves no contato (!!) e ninguém
os vê? Não há câmeras num prédio daqueles? Os primeiros depoimentos dos
policiais davam conta que não tinha sido possível saber que eram crianças pois
os vidros do carro eram escuros.
Disseram também que o
menino atirou pelo menos três vezes em direção a eles. Recapitulando: uma
criança de 10 anos dirige um carro em alta velocidade e ao mesmo tempo
abre o vidro, atira (para trás!) e depois fecha o vidro novamente (se não dava
para ver através do vidro é porque estava fechado, certo?). Fez isso 3 vezes,
assim naturalmente, como quem abre e fecha o vidro do carro para bater a cinza
do cigarro? O Brasil perdeu um exímio protagonista de Hollywood.
Brincadeiras à parte,
o mundo de Ítalo só se materializa para o mundo de Catarina (não a específica,
mas as catarinas que vivem em lares com wifi) quando tragédias assim acontecem.
Antes disso, ignora-se solenemente as pessoas que estão em condições
indigentes.
A redução dessa
desigualdade necessita de um esforço conjunto de vários segmentos da sociedade.
Se deixar só para a polícia resolver, ela resolve do jeito dela. O menino não
teve nenhuma proteção de instituições sociais que evitassem chegar aonde
chegou.
Italo era só uma
criança. Abandonada, causou prejuízos a terceiros e teve um fim trágico. Só
hoje sabemos que sonhava em ser cantor. E J. (11 anos), seu colega que continua
vivo? Terá um futuro diferente?
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·
Conforme se
noticiou fartamente, o menino foi “apreendido” várias e váriaz vezes, entregue
à família (que família?), aos conselhos tutelares (e por conseqüência, à rede
de atendimento de Direitos da Criança e Adolescente, que deveria ter ‘promovido,
protegido, defendido’ seus direitos...
·
Mas qual foi a atenção que recebeu? O que lhe
propuseram como ajuda? Quem ofereceu amparo? Ninguém, a ‘rede’ ou se omitiu, ou
squer tomou conhecimento das apreensões... o “sgdca/sistema de garantia de
Direitos de Crianças e Adolescntes” não se completa, não fecha, não conversa,
não se articula, ao mobiliza, não atende, não cuida, não preveni, não atende...
·
Italo aprendeu a se virar. Afinal de
contas, é preciso comer para sobreviver.
Como Italo
e o menino que sobreviveu em São Paulo, aqui em Açailândia do Maranhão temos
dezenas e dezenas, sim, de Crianças e Adolescentes, em famílias como as deles,
desassistidas, desemparadas, despomovidas, desprotegidas, diante de ‘sistema’
em bancarrota ou franca falência, incapaz de ‘mudar’ alguma coisa na vida
dessas Crianças e Adolescentes, suas famílias e comunidades.
(Eduardo
Hirata)
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