(No “Viomundo”., 16/02/2018)
Eu não conheci V. Exa., quando ainda estava na carreira do
Ministério Público, onde fiquei mais de trinta anos; caso tenhamos nos
conhecido pessoalmente, perdão pelo lapso.
Li
pelos jornais que Vossa Excelência requereu para que fosse mantida presa uma
mulher, autuada em flagrante, trazendo consigo, segundo a polícia, noventa
gramas de maconha, para fins de tráfico.
Na
audiência de custódia, ela se fez representar apenas por seu advogado, uma vez
que estava dando a luz em um hospital público da cidade; de lá, em função do
pedido feito pelo Ministério Público, representado por Vossa Excelência, e
acatado pelo MM Juiz de Direito que presidia o ato, foram a indiciada e seu
rebento levados de volta à carceragem.
O
bebê, bem o sabes, tinha apenas dois dias de vida. As notícias dão conta de que
a indiciada era primária e que, além daquele criança, é mãe de uma outra, de
três anos de idade.
Escrevo
esta carta aberta porque os noticiários deram conta também de um fato
significativo: a gravidez de Vossa Excelência.
Uma
mulher grávida, promotora de justiça, pediu a um juiz de direito que mantivesse
presa uma outra mulher, que acabara de parir, levando consigo seu rebento para
o cárcere.
Admitamos,
parece ser enredo de um novela de terror.
Fiquei
estarrecido ao ler a notícia.
Fiquei
pensando como duas mulheres podem ter gestações tão distintas, eis que o fruto
de seu ventre, prezada Promotora, nascerá em uma maternidade de alto padrão e
será recepcionado e festejado por parentes e amigos, que lhe darão boas vindas.
Sapatinhos,
rosas ou azuis, na porta do quarto, avisarão aos visitantes que ali nasceu uma
criança linda e saudável, que receberá de todos que a cercam todo amor e
conforto.
Nessas
maternidades, a segurança é uma obsessão e nada de ruim acontecerá ao rebentos
que ali nascerem.
É
abaixo de zero o risco de alguém estranho, tenha a autoridade que tiver, sair
com um dos ocupantes do berçário em seus braços.
As
enfermeiras são sorridentes e recebem carinhosamente pequenos e merecidos mimos
das famílias que acolhem, os médicos são pressurosos e acolhedores.
A
suíte onde Vossa Excelência se recuperará do parto tem ar condicionado, TV,
rede de wi-fi, a fim de orgulhosas mamães exibam ao mundo o fruto da espera de
nove meses.
Papais
também orgulhosos distribuem charutos e sempre a camisa do time de coração é a
primeira foto que mandam para o grupo de amigos. Tudo é felicidade.
No
outro lado, o bebê nasceu de uma mulher levada à maternidade algemada, que
pariu desacompanhada seu rebento, sem saber e sem ter para onde ir.
Não
teve os luxos do nascimento de uma criança de classe média alta e teve que se
comportar, haja vista estivesse sob escolta policial, não enfermagem, para
atendê-la.
Espero
que não tenha sido algemada à cama e acabou de ir amamentar seu filho no chão
úmido e mofado de uma cadeia pública, onde estava detida, porque não lhe foi
reconhecido seu direito à liberdade, seja por Vossa Excelência, seja pelo Juiz
de Direito.
Há
uma questão, senhora promotora, que supera a questão jurídica.
É
assustador imaginar que a senhora não tenha visto naquela criança que nascia um
pouco de sua criança que traz em seu ventre.
É
assustador imaginar que a senhora, justamente por se encontrar grávida, não
tenha visto, com os olhos da alma, o terror de uma mulher amamentar o filho que
acabara de nascer, num pedaço de espuma, entre cobertores velhos, num chão
batido de uma cela infecta.
Não
posso crer que esse momento lhe tenha também passado despercebido.
Não
posso imaginar que alguém possa trazer consigo tanta ausência de compaixão
humana que tenha se permitido participar de uma situação, cuja insensibilidade
me traz as piores e mais amargas lembranças da História.
Nas
leituras que seu bom médico deve ter sugerido durante sua gestação, certamente,
alguma coisa existe – não é autoajuda – no sentido de demonstrar que os
primeiros momentos de vida de um ser humano são cruciantes e que poderão ter
consequências para o resto de sua vida.
Gente
muito melhor do que qualquer jurista concurseiro que lhe tenha dado milhares de
dicas, disse isso: Freud, Melanie Klein, John Bowlby.
Procure
saber deles, que diriam certamente que teria sido menos desumano que a senhora
e o juiz que acolheu seu infeliz pedido atirassem na mãe.
A
senhora, fique certa, contribuiu para uma enorme dor que essa criança haverá de
carregar por toda a vida. O terror da mãe transmitiu-se ao filho, não sabia?
Enquanto
a senhora há de amamentar teu filho ou tua filha em todas as condições de
conforto e segurança, livre do medo, livre do pavor de alguém apartá-la da
cria, sem o terror de ver grades de ferro à frente, ela ficou com todos os
pavores internalizados.
Enquanto
a senhora há de desfrutar justa licença-maternidade, em que poderá se dedicar
exclusivamente a apresentar o mundo ao doce e bem-vindo recém chegado filho ou
filha, ela estará a dizer a seu filho que ele nasceu na cadeia, nasceu preso,
nasceu atrás de grades, nasceu encarcerado.
Seria
duríssimo, mas inevitável se a falta cometida fosse de tamanha gravidade que
não se acenasse ao horizonte uma solução menos gravosa.
Mas,
haveria de ser do conhecimento de Vossa Excelência, como deve ser do
Magistrado, que o STF de há muito pacificou essa questão e essa mulher terá
direito a penas restritivas.
Isto
é, jamais poderia ter permanecido presa, pela singela razão de ter o direito de
ser posta em liberdade.
É
o que diz a Constituição Federal: ninguém será levado à prisão ou nela mantido,
quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança, no art. 5º,
inciso LVI.
A
senhora e seu Magistrado agiram com abuso de direito, percebe?
Permito-me
dizer que aprendi, dentro do Ministério Público, que não se pode fazer Justiça
sem compaixão, sem amor pelo próximo, sem respeito pelas pessoas.
Caso
se caia nessa cilada, somente se produzirá terror, como esse que a senhora
produziu.
A
Justiça Criminal, cara ex-colega promotora, se mede a partir do direito de
liberdade.
Aliás,
quem diz maravilhosamente sobre isso é também um ex-integrante do MPSP,
Ministro Celso de Mello.
Sugiro
que a senhora procure ler e estudar um pouco mais, um pouco além desses manuais
catastrofistas que colocam os promotores e juízes como agentes de segurança
pública, algo que nunca foram e nunca serão.
Leia
mais humanistas, é evidente a falta que lhe fazem.
Vossa
Excelência, quando voltavas para casa, uma lágrima por aquela criança nascida
na cadeia, chegou derramar?
Pela
mãe abusivamente presa, em algum momento, chegou a ver na barriga dela a mesma
barriga que é a sua?
Em
algum momento dessa tua vida, conseguiu pensar que aquela mulher lhe é igual em
tudo?
Que
o fruto de vosso ventre nascerá como nasceu o dela? Que amamentará seu filho
como ela amamentou o dela?
Que
mecanismo mental foi esse que quebrou uma identificação que haveria de ser
imediata?
Onde,
enfim, Vossa Excelência deixou a humanidade que deve legar a seu filho?
Com
respeito,
*Roberto Tardelli, Advogado e
Procurador de Justiça Aposentado.
PS do Viomundo: A
mãe foi solta por decisão do ministro Celso de Mello, do STF.
Estamos sim, Carmen Lucia, cansados do judiciário, estamos fartos desta 'judicialização' de tudo e tod@s (cá do andar de baixo e de seus inimigos políticos...)