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19 de março de 2018
A brutal execução da vereadora Marielle Franco
provocou uma onda de choque emocional que atingiu praticamente todo o Brasil. O
choque despertou forças anímicas de indignação, revolta, tristeza, compaixão,
solidariedade e dor nos mais diversos setores sociais. Fora algumas
manifestações hipócritas é de se crer na sinceridade dessas diversas
manifestações sentimentais com o ocorrido.
O que é o trágico-normal? É a tragédia naturalizada no
Brasil, integrada ao nosso cotidiano de violência, que entra em nossas mentes
pela TV, pela Internet, pelo noticiário. A aceitamos como algo normal em nossas
vidas, como algo constitutivo da paisagem social, cultural, política e mental
do nosso dia-a-dia.
O trágico-normal é a morte do menino Benjamin de apenas
um ano, atingido na Favela do Alemão. O trágico-normal são as mulheres grávidas
baleadas e os ainda não nascidos atingidos por balas perdidas no ventre das
mães.
O trágico-normal são as milhares de mulheres espancadas
no silêncio do lar ou nas ruas e, muitas delas, assassinadas pelos seus
companheiros ou ex-namorados. O trágico-normal são os jovens pobres e negros
assassinados todos os dias, muitas vezes pela própria polícia que deveria
protegê-los. São mortos simplesmente por serem jovens pobres e negros.
O trágico-normal são os mortos e torturados da ditadura,
é a execução de Chico Mendes é o assassinato de líderes indígenas, sem
terra e ativistas ambientais e dos direitos humanos.
Nos últimos 5 anos foram quase duzentas assassinatos
documentados de líderes e ativistas. Só nos lembramos deles nos momentos de
ondas de choque emocional.
É até por isso que não devemos alimentar muito a ilusão
de que Marielle se tornará uma heroína nacional estampada em estandartes,
cartazes e bandeiras seguidos por milhões de negras e negros, de jovens,
trabalhadores, estudantes e intelectuais a desfraldarem as suas insígnias na
praça dos Três Poderes, no Palácio do Planalto, no Congresso Nacional e no
Supremo Tribunal Federal.
Seria a suprema e
merecida homenagem a essa lutadora corajosa. Mas não somos capazes de
glorificá-la a este ponto. Seria também a suprema homenagem aos outros bravos
lutadores que tombaram pelas balas covardes dos sempre atocaiados contra a
justiça e a igualdade.
Diga-se, ainda, que o trágico-normal são os 174
assassinatos diários, os quase 62 mil assassinatos anuais, fora as outras
formas de violência.
Em oito anos de guerra na Síria, com superpotências
envolvidas e com uma brutalidade inominável, morreram de 511 mil pessoas –
cerca de 62,8 mil por ano. No silêncio do nosso trágico-normal matamos,
praticamente, tanto quanto.
Os assassinos de Marielle, tenham sido eles milicianos,
policiais ou traficantes, foram apenas executores das ordens emanadas de um
sistema criminoso e corrupto. Note-se que há o assassinato seletivo de líderes
e ativistas em todo o Brasil: são assassinados aqueles ativistas que estão lá
na ponta, aqueles que têm a coragem de enfrentar e denunciar os males e a
brutalidade do sistema lá em baixo, onde nós, intelectuais, parlamentares,
líderes partidários, estudantes, advogados, não chegamos.
Marielle não foi morta por ser vereadora do PSol, mas
porque era vereadora do PSol que enfrentava o sistema onde ele manifesta a sua
face mais criminosa: lá onde estão os pobres, onde estão as periferias. Pode-se
ser radical nos parlamentos, nas universidades, mas não nas periferias. Não
junto aos pobres.
Milicianos e organizações criminosas são o Estado
operando na ilegalidade, são expressão desse Estado e desse sistema criminosos.
Não nos iludamos quanto a isso. Milicianos e crime organizado são males que
precisam ser combatidos. Mas será como enxugar gelo se forem combatidos apenas
em si mesmos, sem mudar esse sistema.
Em todos os lugares, o Estado ilegal e violento só é
possível enquanto operador do Estado legal quando este se tornou presa de
esquemas e quadrilhas de corruptos e criminosos. Quadrilhas governamentais
corruptas e criminosas são cúmplices e avalistas do Estado ilegal delinquencial
e violento.
O Estado legal é
prisioneiro de grupos particularistas, que o saqueiam sistematicamente para
auferir renda e riqueza, transferindo recursos dos pobres para os ricos. Foi
este sistema que matou Marielle e tantos outros ativistas, escolhidos para
morrer de forma seletiva.
Os líderes progressistas precisam assumir uma
responsabilidade maior
A forma brutal com que Marielle foi ceifada e os
emblemas de suas lutas conferiram-lhe grande reputação e poder simbólico. Para
combater estas significações, desencadeou-se uma guerra pérfida na Internet,
eivada de mentiras monstruosas, contra a sua reputação, contra a sua dignidade
e contra a sua memória.
Essa guerra é
assimilada por pessoas das classes médias baixas e pessoas pobres. Eles têm em
seus celulares vídeos, que foram produzidos às dezenas pelos centros de
operação dessa guerra, para mostrar que Marielle “defendia bandidos”,
simplesmente por combater a morte de jovens negros e pobres. Essas pessoas,
enganadas em sua boa fé, amedrontadas com a falta de segurança e de perspectivas,
simpatizam com Bolsonaro.
Trata-se de um
enorme problema para as esquerdas porque as esquerdas ficam indignadas contra
essas canalhices, o que é justo, mas as esquerdas não sabem fazer esta guerra.
As esquerdas precisam acordar de seu sono entorpecedor e
perceber que estamos imersos numa guerra de vastas proporções, travada em
várias frentes e de forma sofisticada, envolvendo valores e interesses.
Aqueles que
avaliam que a batalha está vencida porque o governo está desmoralizado e porque
Lula lidera as pesquisas e, se não puder ser candidato elegerá um ungido,
enganam-se. Assim como agem para impedir e silenciar Lula, agirão para
desmoralizar qualquer substituto seu. O fato é que as esquerdas não estão
preparadas e nem aparelhadas para enfrentar a guerra em curso, cuja última
instância é o assassinato.
Passada a onda de choque, a tendência natural das
esquerdas é a de se voltarem para embate eleitoral. Uns defenderão Lula, outros
o Boulos, terceiros a Manuela e quartos o Ciro Gomes. Esta é a realidade posta.
Mas, neste
momento, é preciso um freio de arrumação em tudo isso. A realidade cobra uma
responsabilidade maior dos líderes. Esses candidatos deveriam sentar-se numa
mesma mesa, não para buscar uma unidade que não virá, mas para definir um
manifesto à nação, ao povo brasileiro, traçando uma linha divisória, um risco
no chão, para dizer que não admitirão que ele seja cruzado pelas forças
corruptas e criminosas que mandam no país e que têm seus braços operacionais no
Estado ilegal e violento. Esse manifesto deveria ser uma diretriz de luta de
todos os partidos e movimentos progressistas.
Estes lideres, de forma conjunta, precisam dizer que
lutarão por uma democracia que não existe para a imensa maioria dos
brasileiros. Precisam dizer que não admitem mais o desmantelamento de direitos.
Precisam dizer que os brasileiros não suportam mais a
desigualdade, a injustiça e a violência contra o povo e os pobres. Precisam
dizer que não aceitarão mais a violação da ordem constitucional pelo próprio
Judiciário. Se fizerem isto, estarão prestando a homenagem que Marielle merece.
***
O que resta de “esquerda, de movimento social,
de frente progressista” aqui em Açailândia do Maranhão, precisa dizer que a
democracia não existe para a imensa maioria, que não aceita mais o desmantelamento
de direitos,; que não se suporta mais a desigualdade, a injustiça, a violência
contra o povo e os pobres.
Precisa pautar que as tremendas injustiças e
omissões constituem intolerável ‘arquivamento’, intolerável” trágico-normal” (as situações da transposição
do Pequiá, da não-entrega das três mil moradias do Minha Casa Minha Vida; os
casos de violações de direitos de Crianças e Adolescentes nas situações do ‘provita
, cpi 2003-04, menino desaparecido e assassinado Elson; os assassinatos das
meninas Maria Marta, Edinete, Gerlane, os adolescentes assassinados quando ‘atendidos’
pela FUNAC em medida socioeducativas; o descaso do município com a educação, a
falência da saúde pública, etc., etc., etc., ) que vitaminam a impunidade e o
descrédito com a denúncia - denunciar prá quê, prá eu ser a punida? Ser assassinada
como a vereadora? – me disse uma
professora na sexta-feira, 16/03).
É preciso
recrudescer, é preciso ‘radicalizar’. Essa seria a homenagem açailandense a
Marielle, a todos e todas que tombam defendendo Direitos Humanos.
(Eduardo Hirata)