sábado, 10 de março de 2018

O direito vencendo a ciência





 Renato Janine Ribeiro – na Carta Maior08/03/2018

Muito se fala hoje em judicialização da política, isto é, na dominação do espaço político pelos juízes e promotores. Mas vou levantar outro problema, que é o da dominação da vida pelo direito - o que poderíamos chamar de juridicização da vida, se quiserem


Praticamente não existem ciências humanas antes do século XIX. Quer dizer que sociologia, antropologia, ciência política, psicologia e mesmo história, como ciências, têm no máximo duzentos anos. Houve precursores, mas essencialmente o que hoje conhecemos do ser humano é obra recente. Os avanços nessas áreas foram notáveis.

Acontece que, quando você estuda o indivíduo ou a sociedade, você está envolvido no estudo. Podemos ser mais objetivos quando tratamos de física ou química, mas no caso do ser humano nossos interesses ou desejos se envolvem. E isso traz pelo menos um resultado positivo: quem estuda o ser humano, na maior parte dos casos, quer melhorar a vida de nossa espécie. Haverá divergências sobre o que é melhor para nós, mas a vontade de melhorar será forte. Quem usou as ciências humanas para o racismo acabou no lixo da História.

Isso levou muitos cientistas humanos a se tornarem militantes, sem com isso perderem o rigor científico. Antropólogos, por exemplo, defendem direitos de indígenas, negros e de minorias em geral. E por aí vai.

O problema é que, de um tempo para cá, esse ativismo levou alguns a negarem o próprio espirito científico. Vejam Freud: sua principal batalha foi contra a moral, se quiserem, contra o moralismo. Ele revelou a força de pulsões sexuais que, para sua época, eram algo proibido, de que não se falava. (Agatha Christie, em seus primeiros romances, chega a contar que uma moça em começos do século XX perderia a reputação se a vissem sair de um… banheiro).

Acontece que hoje falar, cientificamente, de certos assuntos suscita, em vários meios, uma reação estranha: é como se a simples menção de algo imoral representasse a defesa dessa imoralidade. Pego diretamente uma declaração de uma signatária do manifesto em defesa da cantada (não do assédio!) assinado por cem francesas, e que afirmou que uma mulher pode gozar durante um estupro. Ela disse que pode gozar, não que goza. No entanto, o que ela disse foi entendido como defesa do estupro. (Não confundi-la com outra que disse que queria ter sido estuprada. São duas declarações bem diferentes). O que ela disse foi infeliz, mas quando se vai estudar a sério a sexualidade o que se descobre pode não agradar aos bons costumes, nem aos antigos da opressão e da repressão, nem aos modernos, da igualdade e do respeito ao outro (e à outra).

E aqui temos o abismo entre a militância e a ciência. O conhecimento científico não pode ter barreiras. Ele lida com o horror, eventualmente. Mas sem se conhecer o que há de pior não se conhece o ser humano. Não há ciência sem a disposição de suspender o juízo moral para se conhecer. Mesmo que nosso objetivo seja combater o horror – no caso, o abuso sexual – precisamos entendê-lo.

Como é justamente no que tange o sexo (uso essa palavra de propósito, e não gênero, porque quero enfatizar o lado do desejo, da libido) que há ainda um enorme número de abusos e de preconceitos, o que pretendo enfatizar é simples: conhecer as causas ou as razões de um processo não significa elogiá-las. Não significa tomar o partido delas.

Já vi muita gente criticando quem procurava ver, em nosso sistema eleitoral, o que favorece a corrupção. Recusavam a ideia mesma de que a corrupção tivesse causas; para eles, decorria apenas da desonestidade pessoal. Por isso, paradoxalmente, repudiavam qualquer reforma que tornasse mais honesto o sistema, alegando que a pessoa é honesta ou não, como se as circunstâncias não jogassem nenhum papel. (Se houver um sistema em que seja francamente prejudicial respeitar as regras do jogo, elas tenderão a ser desrespeitadas. Imaginem-se num congestionamento na estrada, com motoristas ultrapassando pelo acostamento. Conheço gente corretíssima que, depois de meia hora se sentindo otária, adere à ilegalidade.). Pois bem, conhecer as causas – das ilegalidades pequenas, dos abusos e problemas sexuais, da corrupção e da violência – exige muitas vezes lidar com o que chamarei, para simplificar, gradações do Mal. Pois sem conhecê-lo não há avanço científico.

Ninguém coloca essa questão quando se pesquisam as causas de uma doença. Se um médico descobre o que causa uma gripe, ou um câncer, alguém o acusará de estar defendendo a moléstia em questão? Mas é o que muitos fazem quando se investiga o que causa condutas humanas desaprovadas.

E é por isso que o direito, o melhor direito mesmo, a defesa das causas “do bem”, vai se intrometendo em áreas que não são dele. Vai aplicando uma série de normas, corretas, justas, do bem, mas que por vezes negam até a possibilidade de estudar fenômenos constatados. O que acaba sendo um tiro no pé. Se não soubermos o que anda na cabeça do pior criminoso, como poderemos enfrentar as causas do crime?

(Foto: Valter Campanato, Agência Brasil)



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Nessa nossa realidade brasileira e açailandense de tanta violência, criminalidade, “questões sociais”, como poderemos enfrentar as causas do crime (da questão social, da violência)?

Ontem mesmo, em plena luz do dia, em plena maior e mais freqüentada praça da cidade, um jovem foi assassinado, com sete tiros. Agora cedo, outro jovem, em pleno centro, foi “apreendido (e ‘devidamente’ surrado...) por ‘populares’, após roubar um celular de uma senhora.

Como poderemos enfrentar as causas do crime (da questão social, da violência)?

Com mais polícia, mais promotor  de justiça, mais juiz, mais cadeia? É ASSIM, É?...

(Eduardo Hirata)