Por:
Maria
Isabel Amando de Barros* - publicado no “Portal da ANDI, 08/04/2016”
Uma das mais famosas citações sobre o
valor do mundo natural vem de Henry Thoreau, poeta, filósofo e naturalista que ajudou a forjar a forma como entendemos hoje a
necessidade de conservar a natureza: In wildness is the preservation of the
world, traduzido livremente como “Na dimensão selvagem está
a preservação do mundo”.
Mas o que quis dizer Thoreau com dimensão selvagem? Para ele, essa dimensão estava associada a uma
essência, a um estado de ser, definida primordialmente por liberdade, automotivação e auto-organização. A dimensão selvagem tão cara a Thoreau não está no manejo florestal, no manejo de
populações de animais silvestres, na vigilância onipresente que desejamos implantar
na natureza por meio de GPS, drones e satélites. Está na
essência de uma dimensão que nós, seres humanos, não controlamos.
E, então, quais são as oportunidades
concretas que temos de nos aproximarmos da dimensão selvagem citada por esse pensador? Quais são as fronteiras
que cruzam a realidade entre a civilização e a natureza? Para mim, há algumas
experiências e momentos nos quais o ser humano pode ter esse encontro, e
um deles é a infância.
Quando assistimos ao documentário Território do Brincar (disponível na
plataforma Video Camp),
uma iniciativa que procura registrar as sutilezas e a espontaneidade do
brincar, uma pergunta logo emerge: por que raramente vemos esse brincar
potente, autônomo, livre e auto-organizado dentro das cidades, das escolas, dos
espaços das crianças?
Pressinto que uma das pistas para
responder a essa pergunta é: onde está a dimensão selvagem – entendida
aqui como Thoreau a entendeu -,
ou seja, onde está a liberdade, a automotivação e a auto-organização das
crianças dentro das escolas e das casas, no ambiente
urbano?
Quase não está mais. Cedeu espaço
para o controle, a pressa, a mediação do brincar, a superproteção, a
vigilância, a pressão do “ter que fazer” e aprender alguma coisa. Penso que
esses elementos suprimem a combinação de três fundamentos essenciais, mas não
os únicos, que embasam a expressão da dimensão selvagem na infância:
1) Tempo: um tempo solto, sem horários ou atividades
propostas por adultos, que não se mede pelo relógio, mas pela entrega ao
brincar. Quando o UNICEF perguntou para crianças entre 8 e 13 anos sobre o que
mais contribui para o seu bem-estar, a resposta foi clara, simples e unânime: tempo (particularmente com as famílias), amigos e “ar
livre”. O que nos leva ao próximo elemento.
2) Espaço
natural, aberto, repleto de desafios,
explorações, esconderijos e “partes soltas”: inúmeras pesquisas citadas por Richard Louv no livro Last Child in the Woods, mostram que um brincar mais criativo, alerta,
físico e igualitário emerge em ambientes naturais. Dada a opção, a criança escolhe brincar nos
cantos mais remotos e desestruturados de um determinado lugar.
3) Liberdade
e autonomia: para expressar sua pulsão interna,
sua vontade, seu arbítrio, sua capacidade de se auto-organizar no processo do
brincar. Liberdade física e de movimento, de arriscar e errar, de se perder e
se achar, de ir e vir. Aqui cabe também citar a terceira dimensão do limite,
descrita por Yves de La Taille em seu livro Limites: três dimensões educacionais. Nele, o autor diz que as crianças
precisam e têm o direito à intimidade e ao segredo.
Para finalizar, gostaria de propor
uma reflexão sobre este último elemento, tão caro às crianças. Para muitas
delas, não há mais tempo sem adultos por perto, nós estamos sempre lá: as
divertindo, restringindo, entretendo, propondo atividades, brincadeiras,
passeios, o que fazer, como fazer, quando fazer. Em suma, controlando. Entretanto, há muitos aspectos das experiências
das crianças que estariam melhores se elas fossem deixadas sozinhas. Em privacidade.
Ausência de controle não
significa abandono.
Certa vez, conheci uma educadora de uma comunidade no sul da Bahia que me
disse: “Aqui, não brincamos com as crianças. Aqui, as crianças brincam
sozinhas”. Por que? “Para que elas tenham a oportunidade de descobrir o seu próprio brincar e não o de algum adulto. Porque, em pouco tempo, o
adulto cansa de brincar e vai fazer outra coisa”. Ao adulto basta estar
presente, por inteiro, presenteando a criança com a escuta e o olhar sensíveis.
Ausência de controle tampouco
significa falta de disciplina, crianças malcriadas ou rebeldes. Determinação e vontade não significam
egoísmo, e autonomia –
em relação si mesmo – não é sinônimo de desrespeito aos outros.
Acredito que nós, adultos,
precisamos encontrar o equilíbrio entre ambientes preparados e o caos imprevisível da natureza; mediação e auto-regulação; estímulos e
tédio; segurança e risco; presença e ausência. Precisamos aceitar ter menos controle
sobre as crianças. Precisamos acreditar que, sim – como mostra o belíssimo Território do Brincar –, as crianças sabem brincar se lhes é dada a
oportunidade de serem selvagens – autônomas, mestres,
espontâneas, competentes e livres.
Que nós possamos honrar a dimensão selvagem que há em cada criança. Que a sua pulsão seja
reconhecida como valorosa e digna e possa expressar-se em toda sua beleza e naturalidade.
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*Maria Isabel Amando de Barros é engenheira
florestal e mestre em Conservação de Ecossistemas. Sempre trabalhou com
educação e conservação da natureza. Desde 2015 faz parte da equipe do Projeto
Criança e Natureza do Instituto Alana.
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Que “educação”
‘damos’ hoje às nossas Crianças, seres que perpetuarão a espécie?
Como diz Maria Isabel Amando de Barros, “... que nós possamos honrar a ‘dimensão
selvagem’ que há em cada criança. Que sua pulsão seja reconhecida como valorosa
e digna e possa expressar-se em toda sua beleza e naturalidade”.
(Eduardo Hirata)
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