Por:
Luciana
Franceschini Fonseca*, no blog da ANDI, 11/04/2016.
"Como
é chato ser criança hoje em dia".
O desabafo da avó, ao meu lado, consistia no fato de que seus netos pareciam
estar sendo sempre monitorados. O que se observa nos dias atuais, ao contrário
do que as gerações passadas viveram, é um nítido controle das situações de infância, uma vez que a supervisão
às crianças é um sintoma social.
Para os norte-americanos, os pais que
vigiam sistematicamente a vida dos filhos, são chamados de helicopter parents ou, em tradução livre, pais helicópteros. O termo, popularizado desde o início do século,
designa aqueles pais que debruçam excessivos olhares às crianças durante a
maior parte do dia (ou da noite), quando brincam, quando se relacionam com os
outros, quando decidem o que vão vestir ou comer e, até mesmo, quando querem
ficar sozinhas. Recentes estudos apontam que, pais demasiadamente
envolvidos na vida dos filhos, podem prejudicar o desenvolvimento da autonomia e gerar transtornos
afetivos, como estresse, depressão e ansiedade na criança.
Na tentativa de cercá-las de todos os
cuidados e privá-las dos supostos perigos, pais e escola se alternam com a
destreza de uma prova de revezamento. À medida que nos obstinamos pela ideia
fixa da segurança, mais nos aparelhamos com recursos que monitoram
as crianças diariamente, como se fossem suspeitas por sofrer ou cometer um
crime. Em grande parte do mundo, o monitoramento eletrônico é uma
realidade. Desde espaços públicos aos espaços privados, a implantação dos
sistemas de vigilância ganha legalidade.
No Brasil, algumas escolas justificam
a instalação de câmeras sob o pretexto de garantir a segurança e diminuir a
violência e o vandalismo, uma vez que, segundo o art. 7º. da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDBEN), “possuem
autonomia administrativa e operacional para se organizar”. O fato é que o
recurso do monitoramento
pedagógico é oferecido aos pais como um
diferencial, amparado na falsa ideia de que a família, desta forma, se aproxima
da vida escolar de seus filhos. Irônico é pensar que muitos pais acreditam
nesta aproximação virtual, em tempo real, como forma suficiente de estar perto
dos filhos.
É comum confundirmos a ideia de
“olhar uma criança” com a necessidade de vigiá-la. Enquanto a primeira
alternativa só é válida segundo a condição de liberdade, a segunda aprisiona, cerceia. A queixa da avó,
saudosa de sua infância,
é que raramente deixamos as crianças livres do olhar adulto, na maioria das vezes, vigilante e inquisidor, e
que o prazer de ser criança pode estar ameaçado, o que é ainda pior.
Olhar
uma criança pode ser mais do que a ideia reduzida de tomar conta, na tentativa de corrigir um deslize, alertar
contra o perigo ou repreender um comportamento. Poucas vezes o olhar do adulto
é efetivamente para a criança, no sentido de percebê-la em sua essência e admirá-la
em seu mundo particular. Vivemos atualmente aterrorizados e cheios de medo e,
por conseguinte, em uma contradição: na tentativa de zelarmos pelo cuidado de
nossas crianças, criamos pessoas mais desprotegidas, mais suscetíveis aos
impactos da vida e menos resilientes.
Alguns produtos oferecidos no mercado
prometem garantir esta ilusória segurança aos pais. Para exemplificar, um deles
é conhecido como mochila-guia e lembra, inevitavelmente, uma coleira de cachorro
(embora muitos não aceitem a comparação). Trata-se de uma mochila presa
às costas da criança e conectada, com uma espécie de corda, até às mãos do
adulto. Segundo a psicóloga clínica Cecília Zylberstajn, “muitos adultos
transferem para o acessório os limites que eles mesmos deveriam dar aos filhos.
Desta forma, deixam de ensiná-los a lidar com situações de risco e a se
comportarem em público”.
O segundo artifício é ainda mais
assustador, devido à inovação tecnológica inserida na engenhoca. Refere-se a uma pulseira,
para bebês e crianças pequenas, com localizador, via aplicativo celular. Ou
seja, à medida que a criança dá seus passos e afasta-se da presença “segura”
dos pais, o celular apita, avisando sobre o ‘fujão’. É fácil prever, neste
sentido, que os pais dedicarão mais do seu tempo a olhar para a tela do
aparelho celular, ao invés de debruçar olhar e atenção aos filhos, que se
encontram tão próximos. Eis aqui a segunda contradição: na tentativa de
aproximarem-se dos filhos, os pais se afastam, amparados em estratégias que os
mantêm “atualizados”, mas não os substituem.
As crianças
superprotegidas, muitas vezes privadas da
experimentação, não reconhecem os próprios limites e, por consequência, deixam
de exercitar o autoconhecimento. Se tornam adultos frágeis, com pouca autoestima
e, uma vez que ocupam lugares muito seguros, resguardados e livres de impactos,
passam a ser desvalorizados e não reconhecidos como capazes e competentes. O
tiro sai pela culatra: ao sitiá-los com as mais variadas formas de proteção, os
deixamos vulneráveis. “Nos tornamos tão obcecados pela segurança que, já de
cara, privamos nossos filhos da possibilidade de assumir riscos e de pagar
pelas suas consequências, tanto em nível físico quanto emocional”, explicou a
psicóloga social Hanna Rosin, em um artigo publicado na revista The Atlantic (abril/2014) .
É sabido que crianças superprotegidas
são menos autoconfiantes e tendem a se sentir menos
aptas a lidar com a vida. Isto não quer
dizer que devamos afrouxar nosso olhar sobre a criança em situações de risco,
como, por exemplo, perto de uma janela, na piscina ou na rua. Mas, que
precisamos priorizar a qualidade do nosso olhar, com intenção e sem pretensão.
Os benefícios deste propósito garantem, no mínimo, crianças que crescerão com
maior capacidade de olhar para o outro e não tanto para si mesmas.
Um estudo sobre os saberes docentes
aponta que “saber olhar para o aluno” ou “saber fazer uma leitura do aluno” é
indispensável à função do professor, dado que o professor que oferece escuta e
se dedica a perceber o aluno em sua inteireza cumpre, de fato, a função de
ensinar e, desse modo, promove a aprendizagem do educando. Quantas vezes nos dedicamos a olhar
com verdade para nossos filhos e alunos? Ou melhor, quantas vezes deixamos de
vigiá-los para, simplesmente, notá-los?
A criança revela seu próprio universo
quando, minimamente, nos esforçamos em dirigir a elas o nosso olhar. Podemos
fazer isto nos comportando como meros espectadores, sem interferência à
realidade imaginada ou, simplesmente, participando de seu repertório de
brincadeiras, jogos e conversa. Nas duas possibilidades podemos observar, com sensibilidade, como a criança
enfrenta e resolve conflitos, como lida com as perdas, com a dúvida, com o
problema, com a indiferença, com o êxito, enfim, como se articula num processo
natural de crescimento.
David Reeks,
documentarista do projeto Território do Brincar,
cineasta acostumado a filmar crianças, diz que é necessário ser muito rápido ao
captar as imagens infantis e que, nos momentos de filmagem, quando perdia
uma boa cena, de nada adiantava pedir à criança que repetisse o momento. Segundo
ele, “perdia a magia”. Fazendo uma analogia desta experiência, pode-se dizer
que, quando perdemos a oportunidade de olhar de fato para nossos filhos e
alunos, perdemos momentos que não voltam mais e, ao nos darmos conta de que
cresceram, nos surpreendemos como alguém que se distrai ao ‘perder o timing’.
O exercício do “olhar” nos aproxima
de nossos filhos e alunos e, à medida que oferecemos escuta, com ouvido e
coração abertos, passamos a nos comportar com empatia, sem impor nossas
vontades e expectativas. Aprendemos, desde pequenos, que não devemos tocar uma
obra de arte ao admirá-la em um museu e, mesmo assim, conseguimos nos emocionar
ao observá-la. Também assim é possível ceder espaço à emoção quando nos
aproximamos da infância, sem precisarmos, para tanto, justificar uma razão.
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*Luciana Franceschini Fonseca é Pedagoga
(PUC-SP) e Mestre em Educação: Psicologia da Educação (PUC-SP). Atuou como
professora de Educação Infantil e Ensino Fundamental, como pesquisadora do
Projeto de Pesquisa Movimentos Identitários do Professor: representações do
trabalho docente e como docente na área de Desenvolvimento Social. Atualmente é
consultora da área de Educação e Cultura da Infância do Instituto Alana.
“ Assumo e visto a
carapuça. Estamos perdemos a empatia, deixando de ‘olhar’ verdadeiramente
nossas Crianças. Temos coisas mais importantes, por exemplo, ganhar a vida, ser
alguém na vida...”
(Eduardo Hirata)
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